Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história
A história de andar uma casa para frente e duas para trás parece ser o modelo de algumas produções audiovisuais. Se a novela tem em grande parte de sua equipe trabalhadores nordestinos, certamente não são eles que estão em maioria, em cena, representando o... Nordeste.
Nos últimos dias a Rede Globo estreou sua nova novela das 18 horas, “No rancho fundo”. Já quando suas primeiras imagens foram divulgadas uma série de críticas foram feitas à produção. Todas diziam respeito à caracterização do povo nordestino. Comentários como “no nordeste tem pente” ou “falta dois tons de base pra se tornar quase um black face”, foram feitos nas redes sociais.
Um dia antes da estreia da novela, chegou ao catálogo da Netflix o filme "Propriedade", produção pernambucana de Daniel Bandeira, cuja sinopse entrega: “Uma mulher se refugia em um carro blindado para escapar da revolta arquitetada pelos trabalhadores da fazenda da família”.
No caso da novela, poderíamos falar dos atores e atrizes sudestinos que aparecem maltrapilhos, sujos, de semblante sofrido, pele suada, cabelos desgrenhados, roupas em tons terrosos. No filme, podemos falar da construção de um thriller nordestino, ambivalência dos personagens, o incômodo constante que o filme causa. Mas para além de me ater às diferenças estéticas, narrativas e até artísticas, quero falar de como o nordestino come.
“No rancho fundo” os atores performam a fábula da pessoa bronca que fala errado, come errado e que é cheia de mungango. O nordestino da novela come meio sem jeito, segura o talher entortando a mão de forma agoniante e fica com o rosto enfiado na comida. Chegou até ao ponto de, na chamada da novela, o narrador usar da palavra “civilização” como contraponto ao local onde se passa a trama.
(Foto: Frame do primeiro capítulo da novela "No rancho fundo" (2024))Cena da novela "No rancho fundo", dirigida por Allan Fiterman e escrita por Marcos Lazarini, Angélica Lopes, Dino Cantelli e Renata Sofia (2024)
(Foto: Frame do filme "Propriedade".)Cena do filme "Propriedade", de Daniel Bandeira (2022).
(Foto: Frame do filme "Propriedade")Cena do filme "Propriedade", de Daniel Bandeira (2022).
(Foto: Frame do primeiro capítulo da novela "No rancho fundo" (2024))Cena da novela "No rancho fundo", dirigida por Allan Fiterman e escrita por Marcos Lazarini, Angélica Lopes, Dino Cantelli e Renata Sofia (2024)
Ainda que os autores tentem se blindar por entre a licença poética, afirmando que é uma criação livre e que valoriza “os nordestes”, vamos ser sinceros: nos animalizam. Parece que é impossível para quem não tem experiência nordestina conceber que nós simplesmente comemos, e que espetáculos desse tipo servem somente ao gozo dos “civilizados”.
Por isso lembro de "Propriedade", filme que trás a cena de duas mulheres do campo, trabalhadoras, jantando. Tinham sotaque, tinham vestimentas, movimentação corporal, semblantes cansados e toda uma construção de duas, também, personagens nordestinas. Mas elas comem, bebem, conversam angustiadas, e seguem seus caminhos sem, em momento algum, parecerem uma performance caricata de quem realmente são.
Na mesma semana, duas obras distintas se propõem a nos retratar. Com especificidades incomparáveis - é verdade - podemos ainda estabelecer alguns pontos, mas que triste que é ter de dizer para nos mostrarem como gente. E é só o jeito de comer que nos faz gente? Não, mas precisaríamos de outra coluna para conversar sobre isso.
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