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Ester Sabino: "A ciência é a longo prazo"
Reportagem Seriada

Ester Sabino: "A ciência é a longo prazo"

PESQUISA COVID-19 | A pesquisadora Ester Sabino esteve à frente da equipe que surpreendeu o mundo com o sequenciamento genético do vírus SARS-CoV-2 feito em 48 horas. Mas ela não enxerga nisso um feito. Atribui a um esquema bem montado de trabalho. Diz também que a surpresa foi uma reação ao fato da Ciência no País estar subvalorizada como um todo
Episódio 4

Ester Sabino: "A ciência é a longo prazo"

PESQUISA COVID-19 | A pesquisadora Ester Sabino esteve à frente da equipe que surpreendeu o mundo com o sequenciamento genético do vírus SARS-CoV-2 feito em 48 horas. Mas ela não enxerga nisso um feito. Atribui a um esquema bem montado de trabalho. Diz também que a surpresa foi uma reação ao fato da Ciência no País estar subvalorizada como um todo
Episódio 4
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O grupo de pesquisa liderado pela cientista Ester Sabino ganhou notoriedade em 28 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de Covid-19 surgiu no Brasil. A equipe fez o sequenciamento genético do vírus SARS-CoV-2 em apenas 48 horas, trabalho que poderia ser feito em dias se não fosse a combinação de três fatores: planejamento, organização e conhecimento adquirido com as epidemias passadas de dengue.

O sequenciamento genético de um vírus consiste, resumidamente, em identificar e codificar a sequência do material genético dele, o que permitiria decifrar, dentre tantos mistérios, a rota de transmissão e dispersão do vírus que havia sido descoberto pelos chineses apenas algumas semanas antes. E, principalmente, possibilitaria chegar ao tão almejado desenvolvimento das vacinas. 

Nesta entrevista feita por videoconferência, a pesquisadora reflete sobre as informações que estão surgindo sobre o novo coronavírus, como a descoberta da mutação amazonense, assim como o desejo de firmar parceria com o Ceará para o estudos dessas variantes em Fortaleza.

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Entre uma interrupção e outra para resolver questões do trabalho e se pasmar com a condução política da pandemia, a cientista fala também sobre percepção do tempo, velhice, isolamento e, é claro, vacinas: na semana em que conversou com O POVO, Ester Sabino recebeu a primeira dose do imunizante que indiretamente ajudou a desenvolver.   

 

O POVO - A senhora estava estudando a dengue antes da Covid-19 explodir no Brasil. Como foi isso?

Ester Sabino - Estávamos fazendo com a dengue o que estamos fazendo agora com a Covid agora, que é o estudo genético do vírus e também tentar entender como o vírus se espalha, entender rotas. Nosso foco principal era dengue, chikungunya e febre amarela, principalmente. Como não teve uma grande epidemia de dengue em 2020 e nem agora em 2021, todo o nosso foco está no coronavírus.

O POVO - O estudo do vírus da dengue serviu para o do coronavírus?

Ester Sabino - Tudo colaborou. Por exemplo, foi esse projeto grande do banco de sangue que permitiu que eu fizesse esse estudo em Manaus e outras cidades. Ciência é uma coisa a longo prazo. Esse estudo eu comecei em 2006, e é um estudo que junta e analisa dados de cinco hemocentros do País. Com essa rede de conhecimento já montada por causa da dengue, conseguimos organizar rapidamente um projeto de soroprevalência em doadores de sangue (para estimar o percentual de pessoas que desenvolveu anticorpos da Covid-19 em uma determinada região).

 

"O maior problema do Brasil é a pouca educação, inclusive na área política"

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O POVO - É verdade que seu grupo de pesquisa está querendo estudar linhagens de coronavírus aqui no Ceará?

Ester Sabino - Sim, estamos tentando estabelecer um fluxo. Um dos membros da equipe é do Ceará e nós também temos vários colegas aí. Estamos organizando isso. O estudo de prevalência também foi feito no hemocentro daí, o Hemoce. Nós queremos expandir e estamos tentando fazer isso para entender melhor como o vírus se espalhou no Estado.

O POVO - Essas análises seriam feitas aqui no Estado ou nos laboratórios de fora? Existe essa iniciativa para que seja feito aqui?

Ester Sabino - Existe, mas vai depender da pressa. Quando você está acostumado a fazer uma pesquisa em seu laboratório, sempre demora um pouco mais para fazê-la em outro lugar. A expectativa é sempre a de criar grupos em vários lugares, porque a resposta fica mais rápida. Quando trabalhei com HIV, tinha 20 laboratórios em vários lugares para fazer genotipagem, carga viral, toda essa tecnologia que na época era nova. É preciso casar rapidez sem abrir mão da organização, já que essa estrutura precisa ser facilmente acionada para as próximas ondas e outras epidemias. Ainda não tem nada certo. O trabalho que temos atualmente em colaboração é o feito com o hemocentro do Ceará, para estudo de prevalência. Para o de sequenciamento genético, ainda não, mas interesse, tem.

Médica e pesquisadora Ester Sabino(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Médica e pesquisadora Ester Sabino

O POVO - Com tanta evolução para a vacina contra o novo coronavírus, por que ainda não foi descoberta uma contra o HIV?

Ester Sabino - Foram colocados muitos recursos para tentar desenvolver uma vacina, só que o HIV é um vírus muito difícil porque muta demais, muito mais que o novo coronavírus, e é praticamente impossível desenvolver uma vacina que pegue todas as linhagens. Teve muitos testes e vários fracassos, diferentemente do que aconteceu nos estudos com o novo coronavírus, pois logo de cara, os estudos com os animais sugeriam que a vacina iria funcionar.

O POVO - Qual o legado para a inovação científica que essa vacina para a Covid-19 vai deixar? A tecnologia do RNA mensageiro?

Ester Sabino - Essa tecnologia funcionou muito bem em relação à capacidade de produção de anticorpos, além de ter potencial de ser usada para muitas outras doenças. Mas o mais importante é a rapidez da produção dela. Ela é uma carta na manga e na verdade vamos precisar de mais indústrias que a produzam.

O POVO - Algum palpite de quais doenças poderemos usar logo esse tipo de vacina?

Ester Sabino - Poderiam ser várias, tem só de saber se a produção é barata o suficiente. Eu não sei as que estão em linha de produção, porque não sou diretamente ligada à parte de vacinas, mas com certeza, a de HIV não vai ser fácil, mesmo com a vacina de RNA, porque o problema não está na produção e sim nas mutações do vírus. Talvez para o HCV (vírus causador da hepatite C) seja mais fácil, mesmo também sendo um vírus que varie bastante.

O POVO - Além do HIV e da dengue, a senhora também tem no seu currículo o estudo da Doença de Chagas. Quais as pesquisas das quais se orgulha até hoje?

Ester Sabino - Acho que a principal contribuição da minha carreira foi o estudo da Doença de Chagas, que é uma doença relegada a segundo plano, apesar de muitas pessoas ainda serem infectadas no Brasil. Por causa do desmatamento, os triatomíneos (barbeiro) têm voltado para a casa das pessoas e aumentado a possibilidade de novos surtos de transmissão vetorial, algo que estava mais ou menos controlado. É uma doença que precisa ser mais estudada e entendida urgentemente, não deveria continuar como está. Como pesquisadora, me sinto realizando um trabalho relevante, porque tem tantas áreas com tantos pesquisadores, que escolher uma que é relegada a terceiro plano te faz acreditar que se está, de alguma forma, fazendo uma contribuição importante a uma área que a maioria deixa de lado. Por outro lado, é mais difícil conseguir recursos para pesquisas.

 

O POVO - Como foi feito o sequenciamento do genoma do novo coronavírus? Quando se fala que foi feito em apenas 48 horas e que foi um recorde, dá para imaginar que vocês viraram a noite nesse processo.

Ester Sabino - Acho que houve um excesso na forma como foi divulgado, pois nem havia sido algo tão espetacular assim (risos). Atualmente já tem mais de 350 mil sequências de DNA depositadas por pesquisadores do mundo inteiro. O mecanismo de sequenciamento é, geralmente, muito rápido e demora essas 48 horas mesmo. O que faz a diferença é a equipe de pesquisa estar organizada e preparada. Por isso que os outros cientistas demoraram um pouco mais, porque eles não estavam organizados para fazer o sequenciamento de imediato, e nós estávamos focados. Apesar de todas as dificuldades que é trabalhar com pesquisa no Brasil, o fato de termos tido foco e juntado os reagentes necessários desde janeiro, ou seja, antes mesmo da pandemia ter chegado oficialmente aqui, nos ajudou bastante. Além disso, todos já estavam treinados para fazer o sequenciamento. Ou seja, tudo estava pronto para quando chegasse alguma amostra, o trabalho pudesse ser feito imediatamente. “Ah mas na Itália se tinha mais condição de fazer isso”. Sim, mas eles não estavam focados nisso, por isso demoraram mais a fazer as primeiras sequências. Mas a divulgação aqui fez parecer que era muito mais importante do que realmente foi. Acho que a minha contribuição no trabalho com o Sars-Cov-2 não foi fazer o sequenciamento em 48 horas e sim, descrever as principais linhagens que entraram, como entraram, como se distribuíram, detectar a P1 (variante brasileira do vírus), a B.1.1.7 (do Reino Unido). Penso que as pessoas estavam tão angustiadas e preocupadas naquela época, que quando viram o trabalho vindo daqui do Brasil, acharam que era grande coisa (risos). Mas não era uma descoberta científica de fato. Acho que foi mesmo uma reação ao fato da Ciência no País estar subvalorizada como um todo.

 

"Às vezes sinto como se estivesse em outra dimensão, sabe? Estou sempre no mesmo lugar, ainda que as horas estejam passando. Estou tendo uma percepção diferente do tempo nesta pandemia"

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O POVO - A senhora vem de uma família de médicos, não é?

Ester Sabino - Sim, meus pais eram médicos, meu avô também. Tenho um irmão médico. Como minha mãe, me especializei em pediatria, mas já pensando em fazer pesquisa. Nos primeiros seis anos de formada, eu dependi dos plantões para me manter e fazer o meu projeto de pesquisa nas horas vagas, até conseguir um emprego no qual eu pudesse gastar todas as minhas horas só com pesquisa.

O POVO - Digamos que a senhora estivesse começando a carreira agora. Com o que gostaria de trabalhar?

Ester Sabino - Na verdade, eu já estou querendo trabalhar com desenvolvimento tecnológico na área diagnóstica (uso de inteligência artificial para auxílio ao diagnóstico de doenças), que é uma área que está incipiente no Brasil.

O POVO - Por que interrompeu a fala, doutora?

Ester Sabino - É que acabei de ver aqui uma medida cientificamente questionável tomada pelo governo do Amazonas. Eles deveriam era alocar recursos para a compra de oxigênio e não gastar com outras coisas sem sentido. Como eles podem fazer isso em plena pandemia, com escassez de recursos?

 

"As pessoas estavam tão angustiadas e preocupadas naquela época, que quando viram o trabalho vindo daqui do Brasil, acharam que era grande coisa... foi mesmo uma reação ao fato da Ciência no País estar subvalorizada como um todo"

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 O POVO - Por falar em Amazonas, vocês também estão estudando a linhagem de lá, não é?

Ester Sabino - Sim, fomos o grupo que descreveu a linhagem logo depois dos japoneses, que foram os primeiros a analisar a linhagem de Manaus, que é uma variante do novo coronavírus mais transmissível. Somos um dos grupos que está trabalhando nela - tem a Fiocruz também. Ainda estamos tentando entender muitas coisas, mas é muita informação e nosso grupo é pequeno.

O POVO - Vi que é um grupo majoritariamente feminino.

Ester Sabino - Isso. É que no curso de graduação de Biomedicina, a maioria é mulher, então a maioria que vem para o curso de pós também é mulher. Outras áreas são majoritariamente femininas, como Biologia e Farmácia, que são os cursos que mais colocam pesquisadoras na pós-graduação. Mesmo na Medicina, a metade da turma é de mulher, ainda que os egressos do curso ainda adentrem pouco na área da pesquisa.

Médica e pesquisadora Ester Sabino(Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Médica e pesquisadora Ester Sabino

O POVO - A senhora já conseguiu ser vacinada?

Ester Sabino - Sim, nesta semana (em fevereiro, quando a entrevista foi feita)! Meus pais haviam tomado antes, já que ela tem 95 anos e ele, 89. E eu, como tenho mais de 60, tomei agora. Estou trabalhando de casa e só vou ao laboratório para assinar alguma coisa, mas olha, a rotina está mais puxada porque é reunião atrás de reunião, e é o dia inteiro assim, sem poder dar uma caminhada, uma saída. Estou muito parada fisicamente. Eu nadava e caminhava, agora só estou fazendo aulas online para não parar completamente. Quando a gente fica mais velha, é só parar de se mexer que o corpo já começa a reclamar (risos). Às vezes sinto como se estivesse em outra dimensão, sabe? Estou sempre no mesmo lugar, ainda que as horas estejam passando. Estou tendo uma percepção diferente do tempo nesta pandemia.

O POVO - O que foi agora, doutora? A senhora está novamente com o semblante de surpresa!

Ester Sabino - É que enquanto falo com você, as pessoas estão aqui perguntando coisas e querem que eu olhe outras... é sobre aquela ideia inócua do governo amazonense, que te contei no começo da entrevista. O que vou falar? É um absurdo o governo legislar sem ouvir as pessoas que entendem do assunto. Eles querem fazer teste de sangue para saber se os doadores de sangue estão com Covid, mas isso não é feito em lugar nenhum do mundo. O maior problema do Brasil é a pouca educação, inclusive na área política.

O POVO - Mais que a corrupção?

Ester Sabino - Sim! Porque decisões erradas tomadas por falta de conhecimento geram prejuízos maiores do que os causados pelos desvios. O nosso problema é a falta de conhecimento. Enquanto os gestores continuarem a tomar decisões equivocadas, inviáveis, infundadas e que geram custos, teremos grandes perdas.

Sobre Esther Sabino

1. Paulistana, 61 anos, é médica pediatra e pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). É coordenadora do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), financiado pelo Medical Research Council, do Reino Unido, e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

2. Esther Sabino sempre teve muita facilidade para estudar e entrou para o curso de medicina enquanto ainda estava no segundo ano do ensino médio

3. Em 30 anos de pesquisa, trabalhou em estudos sobre várias doenças, dentre elas a aids, dengue, chikungunya, zyka, Doença de Chagas e malária. Neste mês, ela recebeu a mais alta honraria da USP pela contribuição no enfrentamento da pandemia

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