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E Fortaleza nunca mais se apavorou...
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

E Fortaleza nunca mais se apavorou...

Há cinco anos, uma mão espalmada vermelha de sangue era um símbolo onipresente nas ruas e nas redes sociais. Tratava-se do movimento "Fortaleza Apavorada", que tinha como objetivo cobrar uma ação mais efetiva do Estado na área da segurança pública. Passado todo esse tempo, a violência ainda persiste, mas Fortaleza não se apavora mais. O que aconteceu?

O primeiro motivo é socioeconômico. A pauta do "Fortaleza Apavorada" restringia-se a uma faixa territorial e de renda muito específicas. Não pensava a cidade como um todo, mas somente da praia de Iracema à avenida 13 de Maio. Com alguns ajustes no policiamento, a quantidade de furtos, assaltos e arrastões caiu nessa região, diminuindo a sensação de insegurança vivida por moradores das áreas mais ricas e urbanizadas. Não deixa de ser uma reivindicação atendida.

A periferia, por sua vez,só pôde sentir-se relativamente segura no período da "paz" entre as facções. O relato de muitas pessoas era o de que pela primeira vez podiam transitar livremente de um local a outro sem se sentirem ameaçadas. Não à toa, houve quem apoiasse o crime, sujeito coletivo criminal, mas também portador de demandas políticas das comunidades.

O segundo motivo é político. O discurso do "Fortaleza Apavorada" alinha-se ideologicamente à atual política de segurança, em que a ordem é investir mais na repressão e menos em defesa social. Um bom exemplo disso foi o destaque dado pelo ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, à atuação conjunta entre o governador Camilo Santana e o presidente Jair Bolsonaro no combate às facções.

Além disso, políticos que se valeram do populismo penal foram eleitos em todas as esferas. Fazem parte dessa plataforma de soluções fáceis a liberação irrestrita do uso de armas de fogo, o excludente de ilicitude para policiais que matarem em caso de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" e a ampliação de penas para crimes diversos. Temos, portanto, uma série de motivos para que não haja mais apavoramento.

O resultado dessa estratégia, contudo, já é sabido. O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) apresenta hoje, às 14 horas, na Assembleia Legislativa, uma nota técnica sobre orçamento público. Embora os gastos com Segurança Pública tenham crescido 230,8% no Ceará, entre 2001 e 2018, a taxa de homicídios saltou de 17,2 homicídios por 100 mil habitantes para 56,7 homicídios por 100 mil habitantes.A Prefeitura de Fortaleza também se destaca nesse quesito. Os gastos com segurança pública passaram de R$ 68,6 milhões, em 2006, para R$ 222 milhões em 2018, ou seja, um acréscimo de 223,8% em 12 anos.

Um argumento a favor de tanto investimento é o recuo nos índices de violência. No entanto, a queda ocorre tendo como base um patamar ainda muito elevado. Com 4.158 homicídios registrados, 2018 poderia ter sido o ano mais violento da história se em 2017 não tivéssemos assistido a uma inédita guerra entre facções. É louvável que os homicídios estejam caindo em 2019, mas é cedo para adotar um discurso triunfalista. Precisamos avaliar com cautela o que desse resultado se deve às ações governamentais e o que é efeito de um novo reordenamento entre as organizações criminosas. Após dois anos de confrontos incessantes, é mais que natural haver um período de refluxo. A ocupação permanente realizada nos presídios, centro nervoso das facções, também é um fator contribuinte para a redução das ocorrências criminais.

Embora na fotografia estejamos bem, as condições sociais e econômicas estão cada vez mais precárias. Entre 2014 e 2019, o número de pessoas desocupadas no Ceará saltou de 228 mil para 467 mil.É muita gente em uma situação bastante vulnerável ao aliciamento de grupos criminosos, cuja proposta de ganhos fáceis soa a cada dia mais tentadora. Além disso, a automação dos serviços fará com que muitos empregos sejam eliminados em definitivo, como a função de cobrador de ônibus. Como lidar com essa realidade?

De acordo com a publicação do Cedeca, a opção do Governo vem sendo a do desinvestimento: os gastos com assistência social caíram de R$ 300 milhões, em 2001, para R$ 280 milhões, no ano passado. Os percentuais gastos em áreas correlatas são modestos se comparados ao que se investe em segurança. Como afirma o sociólogo Zygmunt Bauman, em uma economia de viés neoliberal, "os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados". O futuro que se desenha é o da mão pesada da Lei em um estado cada vez mais incapaz de garantir o bem-estar social. O risco dessa combinação explosiva deveria nos deixar apavorados.

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