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O que nos importa a redução do número de homicídios?
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

O que nos importa a redução do número de homicídios?

Pelo 15º mês seguido, o Ceará registrou queda nos números de homicídios. Trata-se, sem dúvida, de uma notícia a ser comemorada ainda que a base de comparação seja bastante elevada, haja vista que os dois últimos anos foram os mais violentos de nossa história. Essa redução confere ainda certa tranquilidade ao Governo do Estado para conduzir sua política na área da segurança pública após o caos vivido no início do ano.

A impressão, contudo, é que a preocupação com o número de assassinatos restringe-se apenas ao governo, aos jornalistas, aos cientistas sociais e aos familiares e amigos das vítimas. O sentimento de insegurança persiste a despeito da queda nos índices de violência letal como se os assassinatos em queda em nada alterassem esse cotidiano.

Dentre as explicações para o fenômeno, duas podem ser destacadas. A primeira se refere ao grau de exposição à violência. Roubos e furtos, por serem mais comuns, causam mais impacto na nossa percepção sobre insegurança que o homicídio, evento bem mais raro de acontecer. Embora o Sistema Policial Indicativo de Abordagem (Spia) tenha diminuído o número de roubos a carro, por exemplo, as pessoas, de modo geral, ainda têm receio em estacionar seus veículos em determinados locais ou parar no cruzamento, por exemplo. Somente com a continuidade nas ações a população poderá voltar a se sentir mais segura, independentemente de haver câmeras nos postes ou policiais na esquina. O sentimento de segurança precisa ser incorporado e conseguir isso certamente será um feito e tanto.

A segunda explicação está relacionada ao modo como lidamos com tais homicídios. E aí os meios de comunicação têm uma responsabilidade imensa. A forma como noticiamos esses casos mais ajuda a criar um distanciamento do que realmente engaja o público em torno dessa questão. A empatia, que o Houaiss define como a "capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente", não é uma competência bastante presente em nossa sociedade. A dor das famílias de jovens e adolescentes assassinados raramente consegue transpor a mera contagem e o sensacionalismo com que a situação é abordada.

A falta de empatia não é exclusividade nossa. Diariamente, lemos notícias de processos sistemáticos de desumanização, como: migrantes mantidos em campos de concentração, refugiados morrendo em naufrágios e pessoas inocentes eliminadas pelas mãos do Estado sem direito a uma investigação justa. Trata-se de pequenas crueldades cotidianas cometidas justamente contra quem possui menos condição de suportar tal situação.

O tema foi abordado em uma oficina promovida pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), na semana passada, sobre cobertura da violência urbana na qual a coluna esteve presente. A quantidade imensa de horas dedicadas às matérias "policiais" nas TVs contribui fortemente para o processo de insensibilização social. As mortes são expostas de forma descontextualizada, como se tratasse de uma questão meramente individual e não de um problema estrutural que afeta significativamente uma expressiva parcela da população.

As redes sociais potencializam esse efeito perverso ao amplificar todo e qualquer evento por menos relevante que ele seja. Brigas de vizinhos, por exemplo, ganham uma repercussão midiática que transcende os limites da rua, fazendo com que seus protagonistas sejam ainda mais estigmatizados. O que realmente é de interesse público e o que é apenas um vídeo caça-audiência numa tentativa desesperada de prender a atenção cada vez mais dispersa do telespectador? Como fazer com que a vida humana ganhe a importância devida e não seja instrumentalizada para fins comerciais? A resposta é complexa. Um primeiro passo seria o respeito à classificação indicativa e aos direitos fundamentais de adultos e crianças suspeitos de práticas de crimes e atos infracionais. É possível cobrir crimes e atos violentos mantendo padrões mínimos de ética e humanidade.

Respondendo a pergunta do início da coluna, só há um tipo de pessoa que não se importa com a redução dos homicídios: aquela que, secretamente, anseia pela eliminação do Outro por considerá-lo uma ameaça. A oscilação no número de mortes violentas é algo que deve nos importar e muito. Para tanto, é preciso levar em consideração o que há por trás de cada número nessa estatística. A cada vida tombada, sonhos, esperanças e potencialidades perdidos de modo irreparável. Uma sociedade conivente com a perda de tantas existências não deixa de ser cúmplice de todos esses assassinatos.

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