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Saudades do lírico
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Saudades do lírico

Tipo Crônica
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"Pela janela do meu quarto, observei o sol nascendo entre as montanhas. A geada, as tílias nos galhos em que aparecem os primeiros brotos", escreveu no jornal a romancista francesa nascida no Marrocos, Leïla Slimani, provocando um massacre de condenações. Seu confinamento na pandemia era um conto de fadas, a bela adormecida, la vie en rose, foi até chamada de uma nova Maria Antonieta - mesmo sendo lenda que a arquiduquesa teria dito, ao ouvir que o povo não tinha pão: Pois que coma brioches! Na verdade há cartas que Maria Antonieta enviou à mãe, onde escreveu da sua preocupação para com os pobres. Não há mais lugar para o lirismo neste mundo incendiado por paixões e ódios.

Escritores de ficção, poetas, cronistas, músicos, atores, cineastas, dramaturgos, todos esquecemos o lirismo e temos falado da política, da epidemia, das desigualdades que se aprofundam, de injustiças, sofrimentos e humilhações, mostramos nossa revolta, analisamos fatos, fazemos circular ideias, registramos o momento para que a História venha com sua balança julgar os vencedores, criamos e aliviamos angústias, bradamos apelos. Os cronistas dos jornais têm sido uma força para aclarar a visão do instante. "O silêncio, neste momento, é cúmplice", apregoa o escritor Milton Hatoum. Fico orgulhosa de estar participando desse movimento.

Mas aos leitores preciso dizer sempre a verdade: sinto saudades do lírico. O lírico, um amor do passado, um amor impossível. Estamos vivendo um tempo antilírico. Sem pausas para contemplar um sabiá-da-praia a ciscar na grama, ou uma criança que passa descalça na rua trazendo uma gaiola vazia. Saudades de crônicas como as de Rubem Braga, lirismo que se ajusta às crises pessoais, abre nossos sentimentos mais íntimos, toca os nervos mais sensíveis e faz nossos olhos marejar. Lirismo que nos ensina a ver no mundo das pequenas coisas as grandes coisas do mundo.

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Não o lirismo comedido, bem-comportado, como diz o poema de Manuel Bandeira, não o lirismo que se perde nas páginas de um dicionário a buscar as palavras mais belas, não o lirismo das frases de efeito, bonitas, bem compostas, mas sem significados. Queria, como Bandeira, o lirismo dos loucos, o difícil e pungente lirismo dos bêbados. O lirismo das crianças, do vento, das saudades. O lirismo que vive dentro do coração das palavras. Lírico é o que fala de sentimentos e emoções. O lirismo é irmão da bondade. É amigo da paciência, da tolerância. O lirismo combina com afeto e entendimento.

Saudades do tempo em que podíamos ser líricos, olhar o sol nascendo entre montanhas, a geada, as tílias nos galhos em que aparecem os primeiros brotos. Precisamos do sentimento lírico, da visão de mundo que em meio à luta chegue à magia poética do cotidiano. Precisamos ver o orvalho no musgo da pedra, a lágrima que escorre no rosto, as cores que se formam de ilusões nas penas do pavão, a grande e espantosa beleza do nosso mar cearense, os nossos coqueiros cujas palhas vibram atormentadas, ouvir os sons que chegam da infância, ver o generoso gesto da terra fazer o milho... Mas não dá mais para ser lírico.

Foto do Ana Miranda

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