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Asas da serpente
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Escritora. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). É autora de Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras)

Ana Miranda crônica

Asas da serpente

Tipo Crônica
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Estava pensando escrever uma crônica sobre as red pills, ou sobre o sentimento de Fernweh, sobre a lindy hop... algo mais urbano, mundial, mais pandêmico, porém estou sentindo a força extraordinária do meio que nos cerca sobre nosso pensamento, nosso estado de espírito, nossa imaginação. Vivendo numa praia onde quase só há passarinhos e camaleões, a força da natureza me inspira. Hei de escrever sobre passarinhos e camaleões.

Mas, ontem encontramos uma serpente no terreno. Fomos limpar uns galhos amontoados e no final lá estava ela, tocaiada, da mesma cor da terra e das folhas secas, difícil de ser vista, já enrolada sobre si mesma e pronta para dar o bote. Era uma jararaca, serpente tão venenosa que seu nome é adjetivo: pessoa extremamente maléfica, traiçoeira, de mau caráter, que tenta enganar ou prejudicar os outros. Eu, que andava pensando em pássaros, chuvas, fiquei pensando nas serpentes.

Fiquei pensando na Bíblia, na incrível história do nosso pecado original, que eu pensava ser o sexo; a fruta vermelha, uma maçã, me sugeria o amor sensual. Mas um dia descobri que a maçã era a ciência do bem e do mal, ou melhor, a consciência. Misteriosa para mim, continuei meus pensamentos, é a razão de Deus ter dado como castigo para Eva o medo da serpente. Uma antropóloga afirma que foi esse medo que salvou a humanidade, porque nos obrigou a apurarmos nossos olhos. Fiquei também pensando nas pessoas que são más, que têm veneno. A natureza sábia mantém esses animais em tocas. Além de viverem escondidas, as cobras são quase cegas, não enxergam no escuro e rastejam.

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Lembrei o ditado da sabedoria popular: Deus não dá asas a cobras. Fiquei imaginando se as serpentes tivessem pernas, pés! Braços, mãos! E se tivessem asas! Mas, continuei pensando, nós, humanos, não somos tão sábios assim e às vezes damos asas a serpentes humanas. E quando um ser humano maléfico sai da toca, ele mostra quem é. Assim surgem os egoístas, assassinos, tiranos, traidores, os que fomentam guerras, os misóginos, racistas, genocidas... Pessoas do mal deveriam ficar em seus covis. A Bíblia mesmo diz que os demônios são subterrâneos. Fiquei pensando se cada um de nós tem uma serpente da maldade dentro de si. Olhei para dentro de mim mesma e, felizmente, não a encontrei. Mas, logo pensei, há serpentes venenosas humanas soltas por aí, rastejando nas ruas, ao sol, e voando, causando o mal, trazendo a inquietude, acabando com a paz. É a serpente do ódio. Diante dessas pessoas, uma jararaca é totalmente compreensível, ela não pica por mal, não planeja; faz por instinto.

Diz o belo poema de Baudelaire, olhar é amar, ou amar é olhar, não lembro bem. Sei que não estou amando nenhuma serpente, mas, pelo menos perdi o terror de encontrar uma serpente. Encontrei-a. Melhor não ter medo, dizem que o que nos mata não é o veneno da serpente, mas o medo que sentimos; o medo acelera nosso coração e espalha rapidamente o veneno pela corrente sanguínea. Alguém deve estar se perguntando: afinal, o que são red pills, o sentimento de Fernweh, e a lindy hop? Isso são assuntos para outras crônicas.

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