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Povos indígenas enfrentam armas invisíveis
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Povos indígenas enfrentam armas invisíveis

Tipo Opinião

Não sabiam os portugueses e espanhóis que suas armas mais letais de destruição em massa, que aniquilariam em alguns momentos-chave da colonização as populações nativas da hoje Latino América, eram carregadas na garganta, nas mãos, nas narinas, nos intestinos e na pele. Sem os germes exalados pelos ibéricos, talvez carabinas, lanças, facões, estratégias de guerra e acordos espúrios para promover disputas entre diferentes povos, da Patagônia ao Rio Grande, não tivessem sido páreos para incas, astecas e tupinambás.

A transmissão em larga escala de doenças virais e bacterianas trazidas pelos colonizadores, que dizimou populações universalmente suscetíveis e imunologicamente frágeis, parece ter sido fator determinante.

Logo após a “descoberta” da América, iniciou-se a primeira pandemia do Novo Mundo, de varíola, que partiu do Caribe em 1518, chegando rapidamente à Tenochtitlán, antiga capital Asteca, hoje Cidade do México, a tempo de facilitar a conquista desta pelos homens de Hernán Cortés, em 1521.

O vírus se deslocou com tanta velocidade que relatos indicam sua chegada entre os incas antes mesmo do primeiro contato destes com europeus. No Brasil, escritos de padres jesuítas também mencionam dezenas de milhares de mortos por doenças exantemáticas (varíola e/ou sarampo) na segunda metade do século XVI, possivelmente ainda no curso da pandemia.

A magnitude do número de mortes, não só pela varíola, entre as populações nativas foi tamanha, que este período é descrito por alguns pesquisadores como a “maior tragédia demográfica da história” e teria contribuído para a intensificação do tráfico de africanos vindos das regiões onde já havia intercâmbio com os europeus.

A falta de mão de obra, causada pela elevadíssima mortandade dos que daqui eram originários, estaria, portanto, associada à não menos hedionda escravidão de homens e mulheres negros. A narrativa do indígena preguiçoso e indolente sempre careceu de base histórica.

Parte desses eventos são relembrados pela jornalista americana Elizabeth Kolbert, em artigo traduzido e publicado recentemente no Brasil pela revista Quatro cinco um.

Enquanto não se conheciam os germes e os mecanismos de contágio - a consolidação da era microbiológica só ocorreria de fato na segunda metade século 20 - ainda havia o benefício do desconhecimento no que se refere à transmissão das doenças pelo contato do “homem branco” com tribos isoladas. Desde então, não mais.

Em 2004 e 2005, participei como monitor de treinamentos a médicos recém-formados convocados para atuar temporariamente nos hospitais de guarnição do Exército Brasileiro nos municípios amazonenses de Tabatinga e São Gabriel da Cachoeira. O primeiro localizado no Alto Solimões, na Tríplice Fronteira com Peru e Colômbia, e o segundo na margem esquerda do Alto Rio Negro, a 850 Km de Manaus. Era um programa de capacitação que abordava epidemiologia, clínica e tratamento de doenças tropicais prevalentes na Amazônia Legal, uma parceria do Ministério da Saúde com o Ministério da Defesa.

Quando, em maio deste ano, São Gabriel se tornou o município com maior taxa de incidência de Covid-19, o leito mais próximo de UTI ofertado à população continuava em Manaus, a três dias de barco, assim como era em 2005. As barreiras sanitárias fluviais para conter disseminação do novo coronavírus chegaram tarde. Passageiros eventualmente infectados, dormindo amontoados em redes no longo percurso, atuaram possivelmente como superpropagadores do vírus. Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo, até o dia 13 de abril, nenhum real dos R$ 11 milhões alocados para serem gastos pela Funai em ações de proteção aos indígenas tinha sido efetivamente gasto.

O aumento das mortes de indígenas brasileiros por Covid-19, inclusive de lideranças internacionalmente reconhecidas, das mais diversas nações, choca o mundo, ante a perspectiva do desaparecimento completo de algumas etnias.

As negativas sistemáticas do presidente e dos seus ministros mais próximos em oferecer proteção aos povos indígenas desde o início da pandemia culminaram no veto a itens essenciais do Projeto de Lei 1142/2020, como à garantia de acesso das aldeias a água potável ou à disponibilidade emergencial de leitos de enfermaria e de UTI para tratamento da Covid-19. Diversas iniciativas como essa reativaram o debate sobre se o ocupante máximo da República será novamente denunciado internacionalmente por incitação ao genocídio indígena.

Antes da pandemia, em novembro de 2019, um grupo de juristas brasileiros já havia apresentado representação formal contra Jair Bolsonaro ao Tribunal Internacional de Haia por incitação ao genocídio de indígenas brasileiros. A queixa está relacionada ao desmonte das estruturas de fiscalização ambiental que permitiu que o desmatamento crescesse exponencialmente, com avanço maciço de garimpeiros e madeireiros sobre as terras demarcadas.

Os ataques repetidos direcionados à existência dos povos indígenas, a seus modos de vida e hábitos remetem à palestra do escritor Daniel Munduruku, proferida na XIII Bienal do Livro de Fortaleza, em 2019. Os índios, palavra que anula a diversidade cultural de centenas de etnias, transformando-as em uma só, são o maior empecilho à destruição completa das florestas. Inabitadas, seriam presas fáceis. As populações nativas barram os garimpos, plantações de soja, criadores de gado, enfrentando o capitalismo voraz e desregulamentado na sua última fronteira.

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