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Imunidade populacional e a segunda onda
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Imunidade populacional e a segunda onda

Tipo Opinião

Nenhuma grande cidade do mundo atingida severamente pela Covid-19 em 2020 tem dado sinais de estar experimentando, por enquanto, uma segunda onda epidêmica.

Fortaleza, Nova Iorque, Madrid, Londres ou Manaus não apresentaram até o momento qualquer indício de repique importante de casos. Em comum, pesquisas apontaram que mais de 10% da população tinham desenvolvido anticorpos contra o vírus em todas elas. Nem os mais diversos protocolos de flexibilização implementados, grandes manifestações de rua ou descumprimento das regras impeditivas de aglomeração foram capazes de interromper a descendência da curva.

Não é plausível que as prévias medidas rígidas de isolamento implementadas ou a potencial sazonalidade da doença (negada pela Organização Mundial de Saúde - OMS) seriam capazes, isoladamente, de produzir tal efeito. Em paralelo, a substancial diminuição da proporção de suscetíveis, após a alta taxa de ataque da infecção, alicerçou uma barreira imunológica que derrubou a circulação viral.

 

De todo modo, a imunidade induzida pelo SARS-CoV-2 ainda suscita muitas interrogações. Aspectos como a duração da proteção, os tipos, a variação de acordo com a faixa etária, a possibilidade de imunidade cruzada não estão elucidados

 

O alcance da imunidade populacional, conhecida como imunidade de rebanho, poderia ser a principal razão para manutenção da baixa transmissão, segundo alguns estudos como o liderado pela portuguesa Gabriela Gomes e que tem participação de pesquisadores brasileiros (disponível no repositório MedRxiv). Ao invés dos esperados 60% de imunizados por uma vacina para que se atinja a proteção da coletividade, uma proporção de 10 a 20% de infectados pelo SARS-CoV-2 - limiar que dependeria entre outros fatores da heterogeneidade da população – já deteria a contínua propagação da doença.

Os sofisticados modelos que foram aplicados por Gomes e colaboradores em quatro países europeus (Portugal, Espanha, Bélgica e Inglaterra) incluem entre os parâmetros os diferenciais de suscetibilidade dos indivíduos à infecção pelo vírus e os efeitos das estratégias de contenção da pandemia. Os resultados ainda não foram publicados e precisam ser confirmados.

De todo modo, a imunidade induzida pelo SARS-CoV-2 ainda suscita muitas interrogações. Aspectos como a duração da proteção, os tipos (celular e humoral mediada por anticorpos), a variação de acordo com a faixa etária, a possibilidade de imunidade cruzada (conferida pelo contato com outro coronavírus) não estão elucidados.

O fato da interrupção provisória da propagação da Covid-19 estar especulativamente associada ao alcance do limiar de imunidade populacional em nada diminui a importância da adoção das medidas de distanciamento social e de etiqueta respiratória, sem as quais o “tamanho” da epidemia, nos mais diversos cenários, seria maior em uma escala multiplicativa.

Mas afinal, o que é uma segunda onda epidêmica? Existe muita confusão sobre isso.
A primeira consideração, elementar, é que para haver uma segunda onda tem que ter sido descrita e registrada rigorosamente a ocorrência da primeira. Esta se caracteriza pelo crescimento de tendência contínua da transmissão, espelhado no número de novos casos e de mortes, que alcança um ápice, o chamado platô, onde se estabelece por um período variável, até a completa eliminação ou queda para níveis residuais, caracterizada por pequenas oscilações. Concluída a primeira onda se pode, aí sim, passar a se cogitar uma segunda.

 

A OMS afirmou, por meio da sua porta-voz na última terça-feira (28/7/2020), que a epidemia de Covid-19, em nível global, se expressa como uma gigantesca onda prolongada e que é prematuro falar em um próximo estágio. As lacunas de conhecimento ainda são inúmeras

 

Outra questão que tem sido sistematicamente negligenciada, inclusive por pesquisadores, é que a população atingida por um eventual segundo ciclo epidêmico, causado pelo mesmo agente, deve ser a mesma que esteve exposta ao primeiro. A identificação de uma nova fase de contaminação tende a ser menos sujeita a incertezas quando se analisam os dados de aglomerados populacionais ocupando um território contínuo, como as cidades ou regiões conurbadas. Estados ou países podem registrar várias epidemias em estágios diferentes.

Não é precisa a afirmação de que os Estados Unidos, por exemplo, vivam uma segunda onda epidêmica. A série temporal de casos e óbitos mostra a mesma onda com dois picos dissociados espacialmente e com evidente lapso temporal.

A transmissão avassaladora do SARS-CoV-2 observada no Nordeste Americano, particularmente na cidade de Nova Iorque, não havia sido vista nos Estados da Costa Oeste e Sul do país. Províncias do Texas, da California ou da Flórida que apresentavam uma progressão lenta dos casos, iniciaram um processo de flexibilização das atividades, antes que indicadores epidemiológicos e assistenciais permitissem. Como resultado, viu-se a explosão de casos em julho, impulsionada pela chegada do verão no hemisfério norte, quando são mais frequentes aglomerações de jovens.

Até pelas dimensões continentais e pela ineficácia das coordenações nacionais da crise em ambos os países, no Brasil ocorre um fenômeno parecido com o americano. A interiorização da transmissão da Covid-19 e o previsível deslocamento regional da doença do Norte e Nordeste para o Sul e Centro-Oeste, além da aceleração da transmissão em Minas Gerais e em áreas do interior de São Paulo, mantém a curva de novos casos ascendente e a de mortalidade em um platô assombroso de mil mortes (média móvel de 7 dias) por mais de dois meses.

A OMS afirmou, por meio da sua porta-voz na última terça-feira (28/7/2020), que a epidemia de Covid-19, em nível global, se expressa como uma gigantesca onda prolongada e que é prematuro falar em um próximo estágio. As lacunas de conhecimento ainda são inúmeras. No nosso contexto, aumentar a testagem para monitorar eventual ocorrência de surtos localizados, rastrear novos casos e manter regras de distanciamento são cruciais para mantermos a estabilidade dos indicadores, até que chegue uma vacina eficaz e acessível.

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