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Quando médicos se afastam das evidências científicas
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Quando médicos se afastam das evidências científicas

Tipo Opinião

Apesar de ainda não se conhecer uma terapia específica que neutralize o vírus SARS-Cov-2, o manejo clínico de pacientes graves com Covid-19 melhorou sensivelmente desde o início da epidemia.

As taxas de mortalidade nas enfermarias e unidades de terapia intensiva caem à medida que protocolos baseados nas melhores evidências são disseminados. Estes indicam a melhor forma de conduzir a oxigenoterapia, apontam a necessidade de se evitar entupimento dos vasos sanguíneos (tromboses), ressaltam o cuidado com eventual falência dos rins, sugerem o uso de corticoides para amenizar a inflamação, entre muitas outras condutas aprendidas em tempo recorde para uma doença nova e de espectro clínico tão amplo.

Por outro lado, talvez pela falta da chamada “bala de prata” no tratamento da Covid-19, pela ausência daquele medicamento que indubitavelmente destrua o vírus, a prescrição cotidiana de drogas experimentais continua para além do aceitável.

São considerados em fase experimental, fármacos cuja eficácia ainda não foi peremptoriamente demonstrada no tratamento de um processo patológico. Não há, portanto, base científica sólida que suporte sua indicação sistemática.

Uma parte desses medicamentos aparentemente são inócuos, considerando o curso clínico da Covid-19. Na melhor das hipóteses, este grupo de drogas pode estar atuando como placebo, o que não deixa de ser temerário e discutível em uma infecção viral. Outros fármacos deste rol tem um comprovado potencial iatrogênico, de provocar malefício ao paciente (aumentar o risco de complicações e/ou morte), o que tem obrigado, por questões éticas, a Organização Mundial de Saúde a interromper os ensaios clínicos que prevejam seu uso em grupos de pacientes. Por fim, há a possibilidade de que futuramente algumas drogas em teste se mostrem eficazes.

No Brasil tem havido um uso indiscriminado de medicamentos cujas evidências que amparam sua escolha como opção terapêutica são inequivocamente “pobres”. Atualmente, os profissionais que as indicam baseiam sua opção na sua própria prática clínica (“eu prescrevo e meus pacientes estão respondendo bem”) ou em achados que advêm, majoritariamente, ou de estudos não controlados com um número de pacientes muito pequeno, ou de pesquisas da ação da droga invitro, cuja extrapolação para seres humanos seria inviável dada a superdosagem utilizada em laboratório.

Particularmente, uma proporção não desprezível de médicos brasileiros tem prescrito, não se sabe se por consenso de alguns, o que tem sido chamado pela população de “Kit Covid”. A composição clássica traz Hidroxicloroquina combinada à Azitromicina, Ivermectina e Sulfato de Zinco.

Constitui-se em um receituário padrão que combina as referidas drogas, partindo do pressuposto que, administradas simultaneamente, poderiam, por atuação sinérgica, inibir a replicação viral ou atacar diretamente o SARS-Cov-2. Como resultado, a história natural da doença seria interrompida e muitos pacientes não evoluiriam para a forma grave. As complicações mais frequentes associadas à eventual severidade do quadro seriam, portanto, evitadas.

Este coquetel farmacológico foi e está sendo largamente difundido em todo território nacional. A massificação desta, digamos, terapêutica, que ganhou caráter institucional (muitas prefeituras anunciaram formalmente a compra e distribuição do “kit”) ou corporativo (um sem número de planos de saúde propagandearam a distribuição das drogas até em regime de drive-thru) é dirigida, em princípio, para pacientes ainda no início do quadro clínico.

Embora não se saiba precisar a magnitude, é possível que o uso profilático (antes do adoecimento) de algumas dessas drogas, seja por automedicação ou eventualmente sob prescrição médica, também esteja acontecendo.

Ocorre que, até o momento, as evidências produzidas pelos estudos de alto poder, que vêm sendo publicados nos periódicos internacionais de maior expressão, não recomendam a utilização de nenhuma das substâncias do “Kit Covid” nos primeiros dias de doença, ou em pacientes assintomáticos e, muito menos, como forma de prevenir a infecção pelo SARS-CoV-2.

Para pacientes hospitalizados a situação ainda é mais delicada. Estudo de meta-análise publicado recentemente que avaliou 839 artigos (29 atenderam os requisitos de elegibilidade) concluiu que o uso de Hidroxicloroquina não reduz a mortalidade de pacientes hospitalizados com Covid-19 e, o que é pior, se associada com Azitromicina, aumenta quase 30% o risco relativo de morte dos pacientes. Apenas o corticosteroide Dexametasona diminuiu significativamente a mortalidade nos pacientes internados que já estavam com suporte respiratório.

Não se deve menosprezar a experiência clínica individual dos mais diversos especialistas como fundamento da escolha do tratamento mais apropriado. As tentativas terapêuticas de diminuir a mortalidade, implementadas pelos que estavam na linha de frente e não viam outras opções nos momentos de pico da transmissão, merecem todo o respeito e devem ser reverenciadas.

Antes do início de maio, quando os estudos mais robustos foram publicados, a imperativa necessidade de tentar evitar fatalidades usando fármacos experimentais era plenamente justificável. Depois que estes se provaram inócuos ou prejudiciais, não mais.

Mesmo considerando as inúmeras nuances que o tema suscita, suspeito que se faça necessária uma reflexão sobre os rumos da medicina no Brasil, diante deste fato que me parece inédito. Nunca tantos profissionais ignoraram de forma tão explícita evidências científicas fundamentais, ainda mais diante de uma emergência sanitária.

Na última segunda-feira (24/8/2020), médicos presentes no Palácio do Planalto, em uma cerimônia intitulada estranhamente de “Brasil vencendo a Covid-19”, articularam-se com o principal entusiasta do uso da Cloroquina no Brasil para a inclusão do medicamento na Farmácia Popular. Assim, a população pobre teria o acesso facilitado “à nossa linda e velha cloroquina”, na definição de uma das médicas convidadas.

A conotação ideológica dada ao uso de um fármaco sem comprovação científica, cuja embalagem é exibida como troféu, encontra eco em uma proporção desconhecida da classe médica. Não se sabe em que medida as opções terapêuticas estão contaminadas pelas crenças de alguns, o que seria muito perigoso e subverteria a essência da profissão. Algo parece estar fora da ordem.

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