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Pandemia: o dilema da volta às aulas
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Pandemia: o dilema da volta às aulas

Tipo Opinião

Há muito se aguardava um posicionamento formal das instituições que gerenciam a crise sócio sanitária causada pelo novo coronavírus acerca da volta das aulas presenciais, que nos levasse para longe Fla-Flu plebiscitário das redes sociais. No último dia 14 de setembro, a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) lançaram uma atualização do documento “Considerações para medidas de saúde pública relacionadas à escola no contexto da Covid-19”.

Duas mensagens principais me chamam atenção. A primeira é de que a maioria dos países que promoveu a reabertura das escolas não apresentou um aumento significativo da transmissão comunitária da Covid-19 associado diretamente à medida. A segunda, uma proposição a partir dos inequívocos impactos negativos do longo fechamento das instituições educacionais sobre a saúde infantil, renda das famílias, economia, crescimento e desenvolvimento dos alunos. Governos deveriam dar máxima prioridade à implementação de planos seguros de reabertura das escolas, com base em avaliações da situação local da Covid-19 nos mais diversos cenários, que garantam que a transmissão está controlada e restrita no território específico.

Quando protocolos de segurança foram seguidos, as escolas não atuaram como espaços de alta propagação do vírus. O documento informa que, em condições epidemiológicas favoráveis, a manutenção ou decisão pelo fechamento de escolas só deve ser considerada se não houver outra alternativa.

 

O fechamento das escolas tem impactos profundos na vida de crianças e adolescentes. Manter as escolas fechadas por muito tempo pode agravar ainda mais as desigualdades de aprendizagem no país impactando em especial meninas e meninos em situação de vulnerabilidade

 

Preocupa, também, o tema da saúde mental. O tempo prolongado de isolamento, longe da escola e dos amigos, tem impactos profundos na vida de crianças e adolescentes. A isso se unem o problema da má nutrição e a proteção contra a violência”

 

Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil

 

Entre as medidas sugeridas pelo documento para um retorno bem-sucedido das atividades escolares presenciais estão a limitação do número de alunos por sala; revezamento de turmas; imposição do distanciamento entre os alunos; ventilação das salas; uso obrigatório de máscaras; medidas de higiene adequadas; identificação dos estudantes/professores/funcionários com alto risco de desenvolver formas graves da Covid-19 (principalmente idosos e indivíduos com doenças pré-existentes) e desenvolvimento de estratégias adequadas para manter sua segurança; e adoção de protocolos de rastreamento com ampla testagem de casos suspeitos entre alunos, colaboradores e seus contatos.

Em posterior comunicado à imprensa divulgado pelas organizações citadas, Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil, afirmou “(...) O fechamento das escolas tem impactos profundos na vida de crianças e adolescentes. Manter as escolas fechadas por muito tempo pode agravar ainda mais as desigualdades de aprendizagem no país impactando em especial meninas e meninos em situação de vulnerabilidade (...) Preocupa, também, o tema da saúde mental. O tempo prolongado de isolamento, longe da escola e dos amigos, tem impactos profundos na vida de crianças e adolescentes. A isso se unem o problema da má nutrição e a proteção contra a violência”.

O comunicado reforça a situação de abandono que milhares de crianças podem estar vivendo com pais e responsáveis voltando ao trabalho, enquanto creches e escolas permanecem inacessíveis em todo Brasil. A insegurança nutricional (crianças tem até cinco refeições garantidas nas instituições públicas), o alto risco de evasão escolar e o aumento da violência contra as crianças aparecem como temas inescapáveis que não podem ser negligenciados pelos tomadores de decisão.

Confesso que estranhei a pouca atenção dada ao documento no momento em que a situação epidemiológica de baixa transmissão sustentada do SARS-Cov-2 em algumas grandes cidades e estados brasileiros, em tese, autorizam o início do processo de reabertura das escolas.

O princípio da precaução (se não conhecemos o efeito devemos evitar) já não se aplica como justificativa para o adiamento da volta às aulas em cenários de circulação viral limitada, se considerarmos as orientações internacionais.

De fato, as evidências indicam que a retomada das aulas não induziu recrudescimento importante dos casos, com raras exceções como o caso de Israel que promoveu a reabertura antes de uma queda consistentes de casos e óbitos, e que os potenciais danos provocados às crianças mais vulneráveis com restrito acesso ao ensino remoto são variados e podem comprometer suas vidas indelevelmente, para além a progressão escolar.

 

Não me parece razoável justificar a postergação pelo fato de já estarmos quase em outubro. Ao invés de contarmos os dias, deveríamos reconhecer a essencialidade das escolas. Não falamos apenas de um local onde crianças e adolescentes adquirem conhecimentos. As escolas são espaços de interação, integração social únicos, cuja privação por mais alguns meses pode ser grave.

 

Dito isso, por que alguns estados já anunciaram que as escolas públicas só voltarão às suas atividades em 2021?

Não me parece razoável justificar a postergação pelo fato de já estarmos quase em outubro. Ao invés de contarmos os dias, deveríamos reconhecer a essencialidade das escolas. Não falamos apenas de um local onde crianças e adolescentes adquirem conhecimentos. As escolas são espaços de interação, integração social únicos, cuja privação por mais alguns meses pode ser grave.

Além do legítimo temor de uma contaminação em larga escala em unidades educacionais, têm sido alegadas restrições financeiras e logísticas, que impediriam estados e municípios a se adequarem aos protocolos, dentre outras motivações. Limitações econômicas podem, em tese, ser superadas para adaptar as escolas. Demandas e pressões das corporações e sindicatos pelo adiamento ou retorno imediato das aulas são legítimas, mas não devem se sobrepor à necessidade real das crianças e jovens.
Lembrando sempre que nada, absolutamente nada, garante que, no início de 2021, estaremos em um cenário epidemiológico mais favorável do que vivenciamos hoje na maioria das metrópoles brasileiras. Nem tampouco parece provável estarmos com uma vacina eficaz disponível universalmente.

É preciso considerar o fato, por exemplo, de que a temporada das viroses respiratórias no Norte e em parte do Nordeste, como no Ceará, é iniciada com as chuvas em fevereiro. Não sabemos ainda se a Covid-19 pode expressar um comportamento sazonal já no ano que vem e/ou se haverá um declínio da imunidade dos já acometidos que poderiam, em teoria, ser reinfectados.

A ausência de diretrizes nacionais ou propostas para o retorno escolar gestadas no Ministério da Educação por um comitê de especialistas (como seria esperado em condições normais) contribui para um debate demasiadamente opinativo que tende à esterilidade. O retorno das aulas presenciais exige rigor científico ao analisar a situação epidemiológica, planejamento minucioso dos protocolos de flexibilização e responsabilidade dos que decidirão. Enquanto isso, o ministro da pasta diz em entrevista que nada tem a ver com isso.

Quero crer, contudo, que pouco a pouco, um consenso vá sendo formado à medida que a situação epidemiológica se estabiliza em todo país e experiências de retomada exitosas são disseminadas.
Escolas fechadas sem justificativas robustas podem ser um marco crítico para os digitalmente excluídos, acentuando desigualdades e reduzindo os extraordinários ganhos educacionais alcançados nos últimos anos.

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