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Abdala e Soberana
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Médico, Epidemiologista. Pós-doutor pela Universidade de Harvard (Harvard School of Public Health). Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Mestre em Epidemiologia Ambiental e Políticas pela Universidade de Londres (London School of Hygiene & Tropical Medicine) e Residência em Medicina Preventiva e Social na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Antonio Lima Neto ciência e saúde

Abdala e Soberana

Cuba, o pequeno país caribenho com cerca de 11 milhões de habitantes e que sofre embargo econômico internacional há quase 60 anos, deverá ser o primeiro país do Ocidente a imunizar toda a sua população com vacina feita em casa
Tipo Opinião
Programa Mais Médicos (Foto: Karina Zambrana/Ascom)
Foto: Karina Zambrana/Ascom Programa Mais Médicos

Parece que se passou um século. Uma madrugada insone de agosto de 2013. Ligo o desktop e a conexão de internet demora a se estabelecer até entrar direto no portal Universo Online (UOL). Sem perder a dignidade, um homem preto, que não escondia a estupefação, era vaiado por jovens brancos de jaleco. Reconheci alguns daqueles que cobriam a boca com as mãos em concha ao longo de um corredor humano por onde ele caminhava. Pareciam urrar e exalar um estranho contentamento. Até os que expressavam raiva estavam satisfeitos. Em algazarra, se divertiam. O cenário também me era familiar. A Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE) foi a instituição onde trabalhei por seis anos. Ali de fato me formei, ali conheci alguns dos profissionais mais competentes e humanos.

Em 31 de março de 2021, artigo da professora Helen Yaffe, da Universidade de Glasgow, publicado no blog da prestigiosa London School of Economics, informava que, das 23 vacinas que estavam na fase III de testes, duas eram cubanas. Elas se chamavam Soberana e Abdala e tinham sido desenvolvidas, respectivamente, pelo Instituto Finlay de Vacinas e pelo Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, ambos sediados em Havana. Outras três candidatas a vacina locais estavam em processo de desenvolvimento.

As vacinas das séries Abdala e Soberana tem características diferentes. A Soberana 2, por exemplo, é uma vacina conjugada (dois ou mais antígenos ligados), sofisticada e única entre as candidatas atuais, que acopla a uma forma de toxina tetânica inativada, fragmentos da proteína spike do SARS-CoV-2, potencializando a resposta imune celular e humoral (mediada por anticorpos) do indivíduo. Já a Abdala, que remete ao título do poema dramático escrito por José Martì, herói da independência Cubana, é uma vacina de “subunidades proteicas” do SARS-CoV-2 que tenta simular a estrutura do novo coronavírus.

Na segunda semana de maio de 2021, depois de um aumento do número de casos e internações, o Ministério da Saúde Pública Cubano autorizou o uso emergencial da Abdala e da Soberana 2 antes da divulgação dos testes clínicos de fase III prevista para este mês. As autoridades sanitárias entenderam que os benefícios de conter, potencialmente, a propagação do vírus, evitando hospitalizações e mortes, eram muito superiores aos riscos. Ambas as vacinas tinham se mostrado seguras e os dados preliminares indicavam indução de resposta imune na maioria dos voluntários (estimadas 400.000 doses aplicadas), segundo o CECMED (Centro para el Control Estatal de Medicamentos, Equipos y Dispositivos Médicos), órgão regulador cubano.

"Para os padrões brasileiros, os números da pandemia em Cuba são irrisórios e dão a dimensão da nossa tragédia." Antonio Lima Neto, ao comparar Cuba ao Brasil no enfrentamento à pandemia

Caso os resultados finais confirmem uma eficácia aceitável para aplicação em grandes contingentes populacionais, Cuba será o único país do Ocidente que imunizará toda sua população com vacinas “feitas em casa”. Embora a omissão não surpreenda, a grande imprensa brasileira ignorou completamente esse feito notável ou publicou matérias desimportantes, apuradas por agências de notícias internacionais.
A ilha com onze milhões de habitantes foi extremamente bem sucedida no controle da primeira onda da covid-19, mas viu a transmissão crescer após a reabertura ao turismo em novembro passado. No dia 29 de abril de 2021, foi registrado o recorde nacional de 18 mortes em 24 horas.

Para os padrões brasileiros, os números da pandemia em Cuba são irrisórios e dão a dimensão da nossa tragédia. O Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, que tem população e distribuição etária semelhantes à de Cuba, notificou trinta vezes mais mortes em um único dia (501 óbitos no dia 16 de março de 2021). Nos quatro últimos dias do verão de 2021 (16 a 19 de março) morreram mais gaúchos vítimas da Covid-19 do que durante toda pandemia no país caribenho, que registrava 149 mil casos e 1.012 mortes acumuladas (2020/2021) na atualização de 7 de junho de 2021. Lembrando que as comparações se referem a um dos três estados brasileiros de maior IDH.

A tradição da medicina comunitária cubana, o rápido cancelamento dos voos internacionais e a própria condição insular contribuíram para que as ações de enfrentamento da pandemia tivessem êxito. Estratégias de vigilância epidemiológica de base local, expressas no rigoroso rastreamento de contatos a partir de busca ativa de casos suspeitos, coordenada pelos médicos de família, enfermeiros e estudantes, que batiam de porta em porta diariamente, impediu a transmissão comunitária do vírus durante quase todo o ano de 2020. Paralelamente, havia um entendimento de que não se podia negligenciar medidas de prevenção e controle com impacto de médio e longo prazo.

Na entrevista à revista científica Nature, o diretor do Instituto Finlay, Vicente Vérez Bencomo, explica a arriscada opção por investimento maciço em vacinas desenvolvidas integralmente no país. A estratégia se contrapôs tanto à compra de imunizantes produzidos pelos laboratórios privados, quanto à simples adesão ao Covax Facility, consórcio da Organização Mundial de Saúde (OMS). Mesmo as parcerias com países mais adiantados no processo de produção de imunizantes como a China receberam menos atenção.

"Antes da pandemia, Cuba já produzia 80% dos imunizantes utilizados no seu programa de vacinação. Segundo o Banco Mundial, em 2019, a Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) em Cuba foi de 4 óbitos infantis" Antonio Lima, ao abordar a independência cubana de imunizantes para suprir o programa local de vacinação

Vérez Bencomo salienta que, por não ter relações comerciais estáveis com a maioria das nações devido ao bloqueio econômico patrocinado pelos Estados Unidos contra o país (que completará 60 anos em 2022), Cuba teve que se tornar autossuficiente em vários campos de pesquisa e produção que garantissem a sobrevivência da sua gente. Um deles foi o desenvolvimento de fármacos e vacinas.

Antes da pandemia, Cuba já produzia 80% dos imunizantes utilizados no seu programa de vacinação. Segundo o Banco Mundial, em 2019, a Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) em Cuba foi de 4 óbitos infantis (crianças com menos de um ano de idade) para cada 1.000 bebês nascidos vivos. Mesma TMI estimada para o Reino Unido, Canadá, Suíça e França, e menor do que a dos Estados Unidos e do Brasil, cuja mortalidade infantil foi três vezes superior.

Quando ficou claro para a maioria dos pesquisadores, em maio de 2020, que não havia um antiviral ou outra droga com atuação específica contra a doença (estudos controlados mostraram a ineficácia da cloroquina e de outras substâncias), construiu-se um consenso internacional de que apenas com vacinas a covid-19 seria controlada. Foi nessa época que houve uma convocação para que o Ministério da Saúde Pública, Universidades, Institutos e Centros de Pesquisa cubanos centrassem todos seus esforços na produção de vacinas contra o SARS-CoV-2.

Quando perguntado sobre a decisão arrojada, Vérez Bencomo é pragmático. Segundo ele, Cuba é um país pobre e, por conta do embargo econômico, as grandes companhias farmacêuticas não fariam negócios viáveis com o país. Mesmo a OMS não teria vacinas suficientes. Estas supririam os ricos em primeiro lugar. O excedente, quando houvesse, seria modicamente compartilhado, não interessando a situação epidemiológica dos países.

Se o objetivo era imunizar toda população cubana no menor espaço de tempo, ele continua, este seria alcançado, mais uma vez, com afirmação da soberania e autodeterminação do país. Daí o batismo de Soberana para a primeira candidata a vacina. Dados preliminares mostram que 80% dos voluntários que receberam as duas doses da Soberana 2 produziram anticorpos neutralizantes contra o SARS-CoV-2.

A imoral desigualdade que se observa globalmente no que se refere ao acesso à vacina não o desmentem. Sobre essa distorção, no último dia 22 de maio, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, afirmou “está ficando mais grotesca a cada dia (...) estão agora vacinando pessoas jovens e menos vulneráveis (nos países ricos) à custa de profissionais de saúde, pessoas mais velhas e outros vulneráveis (nos países pobres)”.

"Ainda haveremos de nos desculpar e voltar a nos inspirar nos bons exemplos que vem da nação cujo bem maior é a saúde do seu povo." Antonio Lima, sobre a reação violenta de médicos cearenses ao receberem médicos cubanos no programa federal Mais Médicos

O homem negro citado no início desse texto e seus colegas eram médicos e médicas cubanos. Estavam sendo hostilizados em um protesto convocado pelo Sindicato dos Médicos do Ceará (Simec). Foram “xingados” de escravos (como se essa pudesse ser uma categoria de acusação), entre outras ofensas piores, também de cunho racial. A razão de tão vil e violenta reação era o Programa Mais Médicos do Governo Federal que previa a contratação de profissionais estrangeiros ou brasileiros para atuar nos chamados vazios assistenciais, localidades e áreas onde não se conseguiam fixar profissionais locais.
Ainda haveremos de nos desculpar e voltar a nos inspirar nos bons exemplos que vem da nação cujo bem maior é a saúde do seu povo.

Foto do Antonio Lima Neto

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