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As redes sem descanso
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Chico Araujo é cearense, licenciado em Letras, professor de Língua Portuguesa e de Literatura brasileira

As redes sem descanso

As redes digitais não param, não há qualquer descanso nelas. Pulsa em todas vinte e quatro horas por dia a existência de pessoas muitas vezes vazias
Tipo Crônica

As tecnologias de muita presença nas sociedades contribuem sobremaneira no funcionamento social, influenciando-o a ponto de transformá-lo profundamente. Nos dias de hoje, com maior intensidade, queiramos ou não, gostemos ou não, alegremo-nos ou assustemo-nos com elas, quando conseguem penetrar densamente no cotidiano das pessoas não tem jeito, revoluções vêm, servindo para o bem e para o mal, dependendo de quem delas faça uso. Foi assim no passado, é assim sempre.

Internet, plataformas digitais, redes sociais digitais inegavelmente têm modificado o dia a dia das pessoas e, consequentemente, das sociedades onde vivemos em todo e qualquer lugar do vasto mundo. Hoje, muito além da influência dos jornais, das estações de rádio, dos canais de televisão como formadores de nossas opiniões esses novos meios midiáticos, a cada dia, modificam revolucionariamente nossa maneira de pensar, de agir e de viver, alterando crenças, valores, costumes.

Os mais jovens parecem já “formatados” desde o nascimento pela interconexão com todo esse manancial tecnológico, enquanto nós, mais vividos, estamos sendo aspirados para dentro desse universo no qual nos perdemos e sobrevivemos de maneira insegura, pois penando para tentar compreendê-lo, no sentido de alcançar condições de nele caminhar com alguma tranquilidade.

Mas... entre os mais vividos, penamos, muitos, para conseguir boa sobrevivência nele. É um mundo estranho, onde viver parece ser sinônimo de vigilância, uma espreita ininterrupta nos espionando e nos determinando por onde ir, para onde ir. De quem são as ideias que temos? Vestimos, comemos, bebemos, existimos de acordo com as nossas reais inspirações?

O "Grande Irmão", metaforizado ridiculamente em programas de televisão em vários países, está devidamente "desenhado" e “caracterizado” em "1984", livro de George Orwell, de 1949, e em filme homônimo, de 1984, dirigido por Michael Radford, cujo roteiro divide com Jonathan Gems (chegado ao cinema brasileiro no ano da produção, hoje tem sua exibição acessível na plataforma Amazon Prime Vídeo desde 2023). Livro e filme são contundentes na revelação de uma vivência humana conduzida por algo “maior” – a esperteza poderosa de quem consegue impor sua vontade dominadora às populações.

No livro e no filme se sabe como o personagem – O Grande Irmão – está muito além daquele protagonista de programas de telerrealidade, uma vez que, no livro e no filme, ele vigia e penaliza quem o contraria, ele um autocrata estampado em imagem, mas, por pretensão, onisciente, onipresente, onipotente.

O “Grande Irmão” caricato aparece em variados programas caracterizáveis como “espetáculos da realidade” e se preocupa em seguir pessoas em diversos lugares fechados (como sendo laboratórios de observação controlada, à semelhança do que se faz com animais, como ratinhos – os mais famosos bichinhos explorados por cientistas no mundo inteiro) e ostenta, em nosso país, diversos títulos como Big Brother Brasil, A Fazenda, Ilhados com a sogra, A Ponte: The Bridge Brasil, entre outros, acontecendo em múltiplos veículos de mídia.

Todos esses programas têm características distintas, porém o objetivo principal a ser alcançado neles é sempre o mesmo: ganhar o dinheiro pago como premiação. E todos os participantes se empenham bastante para vencer o jogo, todos querendo, do começo ao fim, colocar a mão na grana, na premiação paga. O prêmio é o convite para atitudes surpreendentes dos que o ambicionam.

Fazem, em verdade, de tudo para alcançarem o intento, sem se importar com o que inventam enquanto estão jogando, esquecendo, muitas vezes, que além dos espaços onde jogam há suas famílias, amigos, amigas, namorados, namoradas, cônjuges, colegas de profissão, vizinhança, religiões... de olhos bem abertos para o que dizem, bancam e como agem.

Quem participa de uma telerrealidade é observado(a), analisado(a), julgado(a) por quem assiste aos programas via televisão, plataformas, aplicativos. Muitos(as) sofrem julgamentos por seus comportamentos, opiniões, modos de falar, modos de vestir, modos de se relacionar com outros(as) partícipes. Há quem caia nas graças da aceitação da sociedade que tudo vê à distância, havendo também quem seja jogado no âmbito da desgraça após os escrutínios do mesmo público.

Via de regra, qualquer “juiz” ou “juíza” com envolvimento na preocupação de punir ou absolver quem abre mão de sua vida reservada para se expor ao mundo se permite “enriquecer” de opiniões “abalizadas” circulando em redes sociais. É de entristecer! Pessoas se permitem abandonar o recato para terem e verem sua vida virar motivo de comentários e julgamentos em redes sociais, ambiente amplamente nocivo e repleto de superficialidade.

As redes digitais não param, não há qualquer descanso nelas. Pulsa em todas vinte e quatro horas por dia a existência de pessoas muitas vezes vazias, desocupadas, sem um sentido na vida que não seja o de observar e julgar a vida dos outros. Há quem diga que vale a exposição para ganhar prêmios em dinheiro. Há também quem não se importe em se expor, acreditando que as “curtidas” que receba em YouTube, Facebook e Instagram são capazes de lhe trazer felicidade. Um exagero, uma alienação. Quem assiste, ganha o que?

As redes não param, não há mesmo descanso para elas, uma vez que servem para enriquecer os donos das plataformas que as abrigam e que, penso, dão gargalhadas a cada centavo ganho a partir da degeneração de incautos. Os programas de telerrealidade não dão sinais de esgotamento e fim; ao contrário, a cada novo ano parecem respirar mais e com maior força. Uma lástima! A sociedade perde tempo de se tornar melhor, mais rica em humanidade, enquanto se dedica à vigilância dela mesma travestida do Grande Irmão.

Foto do Chico Araujo

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