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Quando o inusitado vira notícia
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Jornalista (UFC-CE) e licenciada em Letras (Uece), é doutoranda em Linguística (PPGLin-UFC), mestra em Estudos da Tradução (UFC-CE), especialista em Tradução (Uece) e em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais (Estácio). No O POVO, já atuou como ombudsman, editora de Opinião, de Capa e de Economia, além de ter sido repórter de várias editorias. É revisora e tradutora.

Quando o inusitado vira notícia

Tipo Opinião

Da cartilha que lista as orientações básicas para combater a desinformação, existe a medida para não propagar ou não ajudar a difundir as mentiras. As "notícias falsas" (ou fake news, como contraditoriamente se tornou mais popular) se nutrem dessa propagação. Se um veículo de comunicação, que exerce o jornalismo profissional, que prega a boa qualidade da informação, entende isso, atuará com eficientes estratégias para ser um canal alinhado à difusão da verdade.

Na semana que passou, um boato correu pelas redes sociais, foi compartilhado pelos grupos em aplicativos de mensagens e, acredite, chegou aos veículos de comunicação - ao O POVO, inclusive. A história da criatura semelhante a um monstro que havia sido vista atravessando à noite em uma faixa de pedestre em Ilhéus, na Bahia, foi tema de matérias em portais de notícias e redes sociais dos perfis de jornais.

A maioria ressaltou nas matérias que se tratava de um boato e focava no texto que o assunto havia "viralizado" na internet, ou seja, havia se espalhado rapidamente. Mesmo chamando atenção para a mentira, jogou-se luz sobre um assunto que não tinha componente algum para se transformar em uma notícia. Fez-se uma matéria com algo que não era significativo nem relevante para o público como notícia. Por que transformar um vídeo tão simplório numa matéria de jornal?

O detalhe é que o vídeo rendeu engajamento, métrica que tem feito com que muitos veículos balizem sua cobertura. Em linhas bem gerais, os indicadores de engajamento mostram o relacionamento com o público e o quanto o conteúdo alcança a audiência, além da interação gerada a partir dali.

"Fait divers"

No perfil do O POVO no Twitter, por exemplo, a publicação sobre a tal criatura tinha, até a noite de sexta-feira, mais de 6.700 republicações e passava das 12.100 curtidas. No perfil no Instagram, eram cerca de 488 mil curtidas e 7.000 comentários. Não são números ruins para um assunto que foge à factualidade dos últimos dias. O monstro, na verdade, era uma animação criada por computador.

Nos títulos das matérias dos veículos pelo País, o apelo foi notável: "Viraliza boato sobre vídeo de criatura circulando em ruas da Bahia" (O POVO); "Vídeo: mistura de chupa-cabra com caranguejo chama atenção na web" (IstoÉ); "Boato sobre 'criatura misteriosa' assusta moradores na Bahia; veja vídeo" (Jornal do Commercio); "Boato sobre criatura circulando em ruas no Sul da Bahia viraliza; veja vídeo" (Correio*; da Bahia).

Um assunto desses, com tais expressões, envolvendo uma criatura estranha, de aparência assustadora, andando pelas ruas de uma cidade é receita certa: vai ter repercussão. O que o Jornalismo precisa diferenciar é o que tem potencial de virar notícia, que é aquilo capaz de despertar a atenção do público, por algum motivo; e o que é passatempo de redes sociais, que, uma vez transformado em notícia, mais confunde do que entretém.

Esses tópicos curiosos, em que o inusitado da ocorrência se sobrepõe à importância, são os chamados "fait divers". É um jargão emprestado da imprensa francesa que foi incorporado ao jornalismo todo, que significa "fatos diversos", em uma tradução livre, tais como escândalos e acontecimentos incomuns.

Um exemplo clássico de "fait divers", contado em várias obras sobre o Jornalismo, é a história da mordida do homem e do cachorro. Se um cachorro morder a perna de um homem, não é notícia, já que não é algo incomum de acontecer. Mas, se o homem morder a perna de um cachorro, aí vira notícia, visto que entra no campo do absurdo.

O "fait divers" apresenta essa carga elevada de espetacularização e curiosidade, de excepcionalidade, de pitoresco. São temas que chamam a atenção, que não duram muito tempo (já já todo mundo esquece) e para os quais os veículos têm dedicado boa parte de suas coberturas, porque há uma audiência para o curioso.

Não se trata, claro, de excluir assuntos de entretenimento. A diversão tem-se tornado crucial para amainar tensões nas sociedades. É preciso muito cuidado, no entanto, para que o "fait divers", ao se unir ao jornalismo sensacionalista, se torne muito mais do que um elemento que estimula o interesse e a interação do público. É um risco investir em assuntos que beiram o insólito e o espetacular com vistas à audiência.

O Jornalismo vive de emoção também e os veículos precisam causar esse sentimento no leitor, sensibilizando o público. O rumo que esse apelo toma é o que deve ser repensado.

Foto do Daniela Nogueira

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