O movimento do "cancelamento virtual" é um fenômeno que se realiza a cada ataque na internet feito a uma pessoa ou a uma instituição, famosa ou anônima. Como estamos na "era do cancelamento", o boicote do público nas redes sociais encontra sempre um motivo, que pode ser o preconceito exposto na fala do "cancelado" até uma atitude considerada condenável sob o tribunal da internet. O Jornalismo precisa, dentro do interesse público, expor essas situações, mas deve, sobretudo, analisar a sua função dentro da cultura de linchamento virtual.
Alguns acontecimentos recentes mostraram que a decisão de "cancelar" alguém nas redes sociais pode ter efeito intenso com repercussões duradouras. Seja a cantora recém-separada que assumiu namoro há poucos dias, sejam os polêmicos confinados do reality show (cada um com a sua história controversa), todos foram "cancelados" em algum momento a partir de menções constantes nas redes sociais. O objetivo é desgastar mesmo a imagem de cada um, promovendo insultos, para que o outro seja envergonhado publicamente.
As redes sociais, canais de difusão para o fenômeno, colaboram para a disseminação dessa crítica. O papel do Jornalismo, neste debate, é crucial para não dar vazão extrema ao lugar que é próprio das redes sociais, para não intensificar a divulgação das notícias que não são relevantes e para reforçar a diferença entre "cancelamento", crítica e liberdade de expressão.
Boicote
É certo que não há como corroborar com atitudes machistas, racistas, homofóbicas e preconceituosas de qualquer tipo. Não deveria ser uma escolha. E sempre que há uma conduta que vá ao encontro desse tipo de afirmação, o julgamento da internet não tem misericórdia. Quando o sujeito é alguém famoso, a situação piora, já que isso se desdobra em perda de dinheiro (patrocínio, trabalhos, contratos) e problemas na imagem. Afinal, que marca gostaria de estampar alguém associado a um caso conhecido de racismo, por exemplo?
O Jornalismo e todos os seus atores devem ter bem definido o que é "cancelamento" a fim de que não contribuam para fazer parte desse fenômeno. Nem toda crítica é "cancelamento". Hoje, na praça pública virtual, a reação é muito mais exagerada, porque, por trás das telas, as acusações e as opiniões se reverberam de modo exponencial.
Ao mesmo tempo, os jornais passam por processo semelhante de ataques virtuais quando publicam uma notícia que desagradam a parte dos leitores. Nas editorias de política e esporte, não é raro. Os confrontos ultrapassam o campo das ideias e chegam aos ataques. É aí que dão lugar à intolerância.
A crítica é própria do ambiente democrático. Faz parte do debate público ter opiniões, manifestá-las e responsabilizar-se por elas. Promover o diálogo e fomentar a discussão é inerente ao Jornalismo, que vive também desse confronto de ideias. No "cancelamento", é que há um viés raivoso, uma postura adotada para calar, sem possibilidade de diálogo ou de manifestação do outro.
Basta nos lembrarmos das polêmicas pelas quais figuras públicas passaram e toda a repercussão que elas causaram. É comum vermos pelos portais de notícia matérias como "Veja lista de famosos que já foram cancelados neste ano" ou "Fulana é a nova cancelada da vez" ao anunciar celebridades que se envolveram em querelas. Além dos títulos caça-cliques, criados tão somente para fazer com que o leitor acesse a matéria, a notícia contribui em nada para a disseminação da informação.
Divulgar quem foi massacrado pelo boicote on-line não deveria ser uma preocupação do Jornalismo, que tem cuidados muito maiores. Informar como denunciar ofensas, expor políticas públicas eficientes para as questões envolvidas e ampliar o debate em vez de incitar o linchamento são exemplos. É assim também que se cancela o cancelamento.
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