Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Todo mundo conhece o Center Um, ali na Avenida Santos Dumont — um shopping que não ostenta, apenas resiste. É uma dessas instituições da Cidade que já nasceu vintage e hoje vive seu auge modesto: um templo de serviços úteis e amores remotos.
Lá você conserta panela, faz cópia de chave, troca bateria de relógio e, com sorte, encontra amigos antigos, que agora aparecem por ali apenas para jogar conversa fora.
Eu gosto de andar por lá de vez em quando. Tem um silêncio acolhedor, de quem já entendeu que não precisa mais correr pra nada.
Foi numa dessas voltas de flâneur de bairro que vi um senhor. Estava sentado num banco de madeira no andar de cima, perto da escada rolante, com o olhar perdido e um choro miúdo — aquele tipo de lágrima discreta, que mais parece infiltração emocional.
Me aproximei com o respeito que se dá a uma tristeza silenciosa. Disse bom dia. Ele respondeu com um suspiro. Foi abrindo o coração como quem desabotoa o paletó: devagar, mas decidido.
— Brigamos... eu e ela — disse, olhos ainda marejados.
"Ela" era, segundo ele, o grande amor da sua vida. Uma mulher que “sorri com os olhos, mas que sabe ser brava como uma dor de joelho”. Estava no térreo, naquele instante, examinando umas antiguidades em uma banca no pátio aberto que claramente vendia versões mais jovens de si mesma.
Lá de cima, víamos a senhorinha: curvada, vestida com um casaquinho rosa antigo, tocando uma vitrola como quem toca uma lembrança. Era uma imagem de cinema. O senhor olhava pra ela como se estivesse vendo sua própria juventude — e talvez estivesse mesmo.
— Eu sou um tolo. Disse umas besteiras. Falei que ela exagera na pomada de reumatismo. Que dá opinião demais nas minhas palavras cruzadas. Fui rude. Mas é que ela me tira do sério... só de vez em quando.
A cena pedia interferência. Me ofereci como mensageiro do amor geriátrico. Desci como um cupido civil, armado com frases reconfortantes e a nobre missão de unir o que a teimosia da idade avançada separou.
Cheguei perto da senhora, que agora examinava uma cristaleira como quem procura um reflexo antigo.
— Oi... desculpe interromper. Vim da parte daquele senhor, lá de cima. Ele está arrependido. Disse que a senhora é o amor da vida dele. Que não consegue viver sem a sua companhia, sua risada, seu cheiro de lavanda e naftalina. Ele quer pedir perdão. Quer vocês juntos de novo.
Ela ficou em silêncio.
— Ele me falou que nunca sentiu por ninguém o que sente pela senhora. Que até as brigas com a senhora fazem mais sentido do que os silêncios que tem com os outros. Disse que sente saudade até da implicância com o jeito que ele dobra a toalha na hidroginástica.
— Não adianta. Está tudo acabado — disse, ríspida.
— Ele estava chorando. Mas daquele jeito contido, sabe? Como quem tenta não se desmontar... mas ele já estava desmontado. E olhava pra senhora como se fosse a última vez.
Vi um leve tremor no canto da boca dela. Um brilho diferente no olhar. Ela parecia pronta para perdoar.
— Acho melhor cada um seguir seu caminho — afirmou, relutante, como se os caminhos deles fossem mesmo separados.
Insisti mais um pouco. Falei que o amor compreende e perdoa. Que todos temos falhas — e que, com a idade, até nossas manias ganham artrite. Pedi que olhasse fundo em seu coração. Que deixasse falar aquilo que nem o tempo conseguiu calar.
Agora ela tremeu. Respirou fundo, ajeitou a alça da bolsa no ombro e se virou lentamente, emocionada. A reconciliação estava no ar, como trilha sonora de filme antigo. Olhou para o alto. Lá estava o seu Romeu. No topo da escada rolante. Apoiado na bengala. Não mais chorava. Apenas olhava para nós com um sorriso leve — um sorriso de esperança.
E então ela perguntou, com a precisão cirúrgica de quem guarda a frase exata para o momento fatal:
— Tá certo, podemos voltar... mas e a esposa dele?
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