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Uma crônica sem fim
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Uma crônica sem fim

Tipo Crônica
0706demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0706demitri

Ana, eu gostei...

Mas acho que estamos muito pra baixo nos textos, precisando ler um romance inquietante ou um Guimarães Rosa pra inventar o paralelo... Gozar.

Beijos

Esta crônica começa assim, meio sem saber para onde ir, procurando a história, fuçando mais um domingo amanhecido pra gente viver. Talvez, morrer não seja ruim quando é tempo. Mas padecer menino, depois de cair do 9º andar em Recife, feito um Miguel sem asas?

Queria encarnar Diadorim e Riobaldo, ter a dúvida amorosa em rebuliço do corpo precisado. Um amor jagunço num refresco de riachão mineiro ou nas águas das Batateiras no Crato.

Viver presente é o que cada dia quer da gente. Sem o alvoroço pandêmico de mais de 35 mil mortos (até a noite da seta-feira) e os brasileiros já quase nem aí para quem foi retirado. Como se morrer de Covid-19 já fizesse parte da lista deus-querente das coisas.

Ninguém espera a morte de ninguém. Não se posta à mesa bolo nem flores nem a melhor louça nem a convida para se sentar. Ela que vem. Não é birra contra a moça do fim de tudo, é só cuidado em não a naturalizá-la num tempo que não era para ser.

Até hoje penso no povo que sumiu no voo 447 da Air France. Entre o Rio e Paris não há glamour, só espanto pelo paradeiro de 228 pessoas no mar sem fim do Atlântico. Assim, não é doce morrer no mar.

E havia, em meus assombros de menino, uma recorrente procissão de almas descendo a serra da Aratanha, na Pacatuba. Pedindo, em sonho, uma dança de São Gonçalo porque findaram em pedaços as 137 pessoas do Vasp 168. Uma quimera ainda hoje para mim.

Morreu até o São João na rua e o cordelista Arievaldo Viana. O moço que escrevia rimados sobre a história da noiva que escapuliu ao pular a fogueira quando viu que o noivo dava coice e não sabia dançar sanfona.

Não ter o chão junino nem bandeirinhas e morrer, repentino, o rapaz da poesia? Ainda fico absorto a tragédia em série. Não dá para se acostumar com quem é bolsonarista e desdenha da morte alheia.

Talvez seja mesmo a profecia literária de J.R.R. Tolkien e nem percebemos a grande história que nos liquidifica. Repleta de escuridão e perigo. "E às vezes, você não queria nem saber o final... por que como poderiam ter um final feliz? Como o mundo poderia voltar a ser o que era, depois de tanto mal?"

Algumas pessoas, fabula J.R.R. Tolkien, se agarram nas coisas e seguem. "E em que estamos nos agarrando, Sam?", pergunta. "No bem que existe neste mundo, sr. Frodo, pelo qual vale a pena lutar". Nem gosto muito do Senhor dos Anéis, mas é uma narrativa fabulosa para se viver. Feito o romance de João e Galeara descrito em carta.

Agora, uma confidência. Já desci até a beira do mar de Iracema para cheirá-lo. Foi durante os delírios quando morri e vivi a Covid derretendo o corpo enfermo. Não sai da cama, infelizmente. Talvez tenha sido a febre alta.

Descia já descalço a Rui Barbosa, nu da cintura pra cima. Fim da madrugada, quase sol. Cheirava a maresia da areia, molhava o rosto, tomava água de sal... os pés inundavam a as longarinas e fui desaparecendo, virando peixe... metade sereia, rabo de arraia, tubarão-baleia... 

Foto do Demitri Túlio

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