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Galeara e João
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Galeara e João

Tipo Crônica
1406demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1406demitri

Teve gente que quis namorar Bolsonaro. E posso estar sendo preconceituoso, mas não queria jogo com aquele sujeito. Deve ser ruim ficar com um cara que não gosta de mulheres nem de homossexuais.

Fiquei até pensando, por conta do Dia dos Namorados, o que ele ofereceria de mimo se namorasse comigo ou fôssemos um clandestino caso de amor. Daria-me uma pistola? Mandaria desmatar uma área na Amazônia para eu criar uns bois brancos?

Não quero nem imaginar! Mas poderia me surpreender com uma salva de tiros, na alvorada do dia, detonados por milicianos. Ou, talvez, ligasse para o Salles e o Mourão mandando os lambe botas peneirar uma mão de ouro em terras indígenas para fazer aneizinhos para mim.

Sinceramente, não teria um pingo de tesão por quem manda invadir hospital durante uma pandemia e considera frescura uma tragédia de morte experimentada pelo Brasil. São mais de 41 mil infelizes.

Sim, há outros funestos. A invasão portuguesa com o genocídio de índios, o tráfico humano e a escravidão, as ditaduras brasileiras, a tortura e o desaparecimentos de presos políticos, o flagelo da seca... a eleição de 2018.

Em meu corpo, um homem como Jair, que tem um fetiche arrebatador por Trump (arreados os quatro pneus), não tocaria. Não teria os meus beijos nem o prazer de me ver dançando Pina Bausch antes da transa.

Bolsonaro, definitivamente, não seria meu namorado nem namorada. É preconceituoso, racista, moralista, falso religioso e incapaz de afetos. Quando muito, porque os filhos herdaram a arrogância, interfere na Polícia Federal para limpar o esterco dos rebentos. E ele acha isso coisa de macho e amor.

Queria voltar a escrever algumas cartinhas amorosas. Quando textos assim são escritos, o corpo da gente fica Pina Bausch

 

Todo mundo sabe, já casei duas vezes. Virgínia e Fátima. Adoro romances intensos, apaixonantes. E, hoje, se me casasse novamente, nem que fosse por um ano ou uma semana, namoraria com o casal Galeara e João. Nós três no mesmo muro.

Galeara, por último, escreveu uma carta a João e enviou para mim. Acho que querendo me encantar. Seduziu. E ela disse que não iria esperar o dia amanhecer para dizer tudo que o coração dela estava pulando para João.

Um coração tem sempre uma urgência. Não achou justo acordar o João. Já bastava a última noite em que o chamou, aflita, com um bicho voador no quarto. E feito um gentil, ele mostrou ao invasor a porta da rua sem lhe dar uma chinelada.

Era uma carta de amor urgente para o João, embora Galeara estivesse escrevendo-a desde o 15 de março, quando a pandemia os obrigou a se encontrarem, por mais tempo, dentro de casa. Então, foram quase 90 dias e missiva se inscrevendo nela.

A carta era só pra dizer: "Nunca te amei tanto todos os dias". Acho também que nosso amor nunca foi posto tanto à prova a cada amanhecimento. Nem mesmo nos nossos primeiros anos em que as dificuldades eram de sobrevivência: morar, criar filhos, cuidar de pai e mãe, trabalho, trabalho, trabalho…

De novo nosso amor (novo) foi posto à prova. Literalmente, estamos vivendo uma vida a dois, pois cedo dividimos com Thiago e Thais. E, ultimamente, com os amigos que eles nos presentearam.

Agora, não dá pra onde dispersar os defeitos. Não dá pra desfocar rabujices. João, esta carta é pra dizer: "Você tirou 10 na prova de amor".

De repente arrumamos um esquema para as tarefas domésticas. Dois turnos. Eu cuido pela manhã, você à tarde. Você cozinha eu lavo. Você aprendeu direitinho onde guardo o sal, as tigelas, os panos de chão…

Quando eu chorei a morte do João Pedro você acolheu minha dor. Quando eu, agora, me revolto com a crueldade sofrida por George Floyd você me acalma e me ensina a não morrer junto.

Na quarentena, meus labirintos vieram: medo, angústia, incertezas, desânimo, tristeza, baixa autoestima, pânico, desejos ruins de matar o Bolsonaro e outros e outras. Ciúmes, descrença, inveja, meu porão escuro ficou exposto. E você, ali, feito uma lamparina na minha escuridão, não desistiu de mim.

Pois, esta carta urgente é só pra isso: Grata, João. Minha mais sincera gratidão. Ah, grata também por tirar o meu retrato batendo panela n'aquela noite. Amanhã mesmo, assim que o dia amanhecer, porei na caixa de Correio do teu coração "estas mal traçadas linhas".

Queria voltar a escrever algumas cartinhas amorosas. Quando textos assim são escritos, o corpo da gente fica Pina Bausch. Bolsonaro, coitado! Porque não sabe o que é o amor, nunca dançará para um namorado.

Foto do Demitri Túlio

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