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O elevador de serviço
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O elevador de serviço

Tipo Crônica
0908demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0908demitri

Na semana que se foi, passei por uma situação que, de início, levei na brincadeira. Depois fiquei pensando sobre os significados. Eu, o repórter-fotográfico Fco Fontenele e o repórter Cláudio Ribeiro fomos orientados a entrar pela área lateral e subir pelo elevador de serviço de um prédio na Aldeota.

Simpático, sem nenhuma arrogância, o moço da portaria do edifício perguntou qual serviço iríamos fazer no condomínio. Nos identificamos como trabalhadores do jornal O POVO e entregamos as carteiras de identidade a pedido. E sem problema.

Subimos pelos fundos do edifício de classe média alta e chegamos ao apartamento pela cozinha. O dono da casa se admirou, disse que estava nos aguardando pela porta da frente. 

Rimos, fizemos piadas e todos, inclusive o cicerone, fomos desfiando um rosário de situações em que a abordagem foi discriminatória por causa da aparência física, roupa ou cor da pele.

O dono do apartamento é negro. Cláudio Ribeiro é negro, Fco Fontenele é branco. Eu, segundo o antigo Instituto de Identificação do Ceará, sou pardo. Alguém que nem é branco nem é negro nem é indígena e, ao mesmo tempo, o corpo tem algo liquidificado na barafunda da europeização dos trópicos.

O IBGE, talvez por acochambre, coloque os "pardos" na estatística dos negros. A suruba genética imposta pelo invasor europeu com indígenas e escravizados africanos teria dado nos "mestiços". E sempre me assusta "a impureza" atribuída aos não brancos desde a colônia e que ainda resiste.

 

Porque o elevador de serviço é um lugar de gente com uma corporatura de quem não deve ser transportada pelo “social”

 

Uma das mais esquisitas definições sobre os que possuem a cor "cabra" ou parda, copiada para uma plataforma popular e muito acessada por estudantes em formação, a Wikipédia, diz simplório assim:

"O manual do IBGE define o significado atribuído ao termo (pardo) como pessoas com uma mistura de cores de pele, seja essa miscigenação mulata (descendentes de brancos e negros), cabocla (descendentes de brancos e ameríndios), cafuza (descendentes de negros e indígenas) ou mestiça".

Sim, ser misturado tem uma diversidade expandida. Mas carrega no corpo, também, registros de estupros, de imposições pelo poder, do machismo do "dá ou desce", da venda de seres humanos, do extermínio de índios, da senzala, do abandono de filhos feitos pelo senhor, da invasão de terras, das caravelas e canhões do europeu.

Pois sim, a aparência caboclinha pode ser indicativo de que somos pessoas que têm de ir pelo elevador de serviço. Um troço que poderia já ter sido extinto dos condomínios. Porque é lugar de gente com uma corporatura de quem não pode ser transportada pelo "social".

Uma mentalidade atávica que se arrasta nas zonas brancas ou "embranquecidas" de Fortaleza. Com permanências, também, na periferia em relações corriqueiras ou em movimentos de fora para dentro como, por exemplo, abordagens policiais.

O rapaz da portaria reproduz uma ordem história ainda persistente no inconsciente coletivo. Provavelmente, a empresa o orientou assim e, talvez, o condomínio não o reoriente. Não é indigno subir pelo elevador de serviço e entrar pela porta da cozinha. Não. O problema é a perpetuação de um preconceito minimizado, inclusive, por mim.

Veja, minha família é, predominantemente, de gente branca. O povo de minha rua a maioria era branco. Minha escola também era branca. Na igreja que frequentei, brancos. A universidade onde me formei eram mais brancos ou embranquecidos do que negros... Difícil não cair na naturalização do "elevador de serviço" e perder mais uma vez a chance de interromper uma escrita recorrente.

Foto do Demitri Túlio

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