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Letícia e Arthur, os vizinhos
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Letícia e Arthur, os vizinhos

Na Cidade pandêmica, um casal de gêmeos desenha outra possibilidade de universo para além das despedidas repentinas e de zaps agonizantes
0404demitri (Foto: 0404demitri)
Foto: 0404demitri 0404demitri

 

Em meio à pandemia, ganhamos novos vizinhos. Nos esbarramos num pequeno corredor que se transformou na única rua do lockdown onde posso ir e vir, tranquilo, no 14º andar da Cidade.

Nossos vizinhos, Letícia e Arthur, subvertem a agonia dos dias de Covid-19. Sabem da pandemia do novo coronavírus, mas encontram alegrias para viver sem grandes elaborações existenciais.

Minto, eles elaboram. São interrogações sobre a vida, sobre descobertas pessoais, sobre palavras novas, sobre cada dia amanhecido e uma jornada para compreender o simples. Semana passada, estavam batendo panela e gritando "fora Bolsonaro".

Enquanto acordo, como, trabalho, cozinho, teclo, entrevisto, entro no Instagram, leio jornais, me assusto com o zap, vou ao banheiro, como chocolate, lembro de minha mãe e passo noites mal dormidas com uma insônia intransigente, Letícia e Arthur descem para a piscina. "Oi, vizinhos!". Da porta aberta os vejo viver.

Riem e falam do que acham importante no dia deles e do Flecha, o cachorro peludo de quatro meses. "Médio é muito ou é pouco?", perguntam porque querem medir o tempo e aproveitar o quanto terão de satisfação.

É o universo paralelo deles em meio ao caos, eles no desencontro com o insuportável que se tornou cada segunda-feira após um domingo sem vacina em abundância.

 

 Na mesma semana, assisti o meu amigo e professor, Gilmar de Carvalho, sair do isolamento domiciliar para o beco sombrio da Covid-19. Estava estável, nos falamos ao telefone no sábado, e os dias foram se derretendo. Contaminação impiedosa.

 

São gentis à moda antiga entre portas de vizinhos. E, mesmo com a pouca idade, trocamos bolo por goma de tapioca com coco, doces por frutas e livros.

Na última quarta-feira, fizeram uma festa miudíssima. "Hoje é meu aniversário e da Letícia". Eita, felicidade!

No mesmo dia, em Brasília, o fauno bufava, conspirava pelas narinas e obrava-se mais ainda no atoleiro, quase sem saída, para onde nos arrasta com uma manada de néscios.

Na mesma semana, assisti o meu amigo e professor, Gilmar de Carvalho, sair do isolamento domiciliar para o beco sombrio da Covid-19. Estava estável, nos falamos ao telefone no sábado, e os dias foram se derretendo. Contaminação impiedosa.

O corpo de Gilmar perdeu vontades. Menos esperamos, estava na UTI e foi entubado. Foi uma Quinta-Feira Santa e uma Sexta da Paixão silenciosas, estranhas, com pressentimentos ruins e, a qualquer instante, um zap perigoso.

Letícia e Arthur desceram para a piscina, voltaram logo por causa do frio e, depois do almoço, queriam conversar sobre a vida deles. A porta aqui de casa fica aberta, tem um vento salvador.

"O pai do meu pai morreu". De Covid? Sobressalto-me. Acho que essa desgraça é única. Não, coração. "Agora, ele só tem a minha mãe. A mãe dele morreu também", Arthur comenta pelos cotovelos. Vixe! Digo assim para não dizer meus pêsames, palavra que já se fartou de tristeza.

É bom ouvir o casal de gêmeos, Letícia e Arthur. Quatro anos de idade, muita perspectiva e eu querendo recordar de meus quatro anos. Há 50 anos. Se houve um eclipse tão violento feito a Covid. A ditadura. Era 1970, mas deslembro. Com certeza só brincava com minha irmã Nukácia enquanto os outros desapareciam. Foi assim...

Há um zap atrás do outro, pedidos de ajuda de toda ordem. Outros com anunciações sobre despedidas, há também outras prosas. De repente, Letícia e Arthur quebram a escrita e dizem ao Pedro (amigo eleito) que não podem revelar "seus nomes secretos de super-heróis"...

 

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