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Lá era uma casa de barriga cheia
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Lá era uma casa de barriga cheia

Tipo Crônica
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Quem proseia diferente do tirano poderá ter a língua cortada, a árvore derrubada, os testículos gorados, o índio garimpado, o boi sangrado, a mulher violada, a educação sufocada, a terra bombardeada...

O autoritário tem medo da palavra, corre léguas do diálogo e não suporta um poema sujo. E quando não conhece ou tem conceito deformado sobre o diferente, bota a rã ou a floresta na mira do machado.

Nem era pra volver o autoritarismo, mas algo desanda e o mercado lucra até no tempo da crise. Na mesma batida, vende a ilusão de um pai dos pobres, de um caçador de marajás, de um mito...

Não é compreensível, pensando aqui, Getúlio ter sido santificado por uma geração de miseráveis. Isso vindo das elites, não há surpresa. Eram do mesmo naipe, farinha da mesma torra, coisas do mesmo balaio.

Foi um ditador pareado a qualquer outro déspota forjado nos golpes, no panelaço furado ou no voto mesmo. Sim, a democracia é apenas uma possibilidade contra o risco do totalitário. Nada além.

E contra os rebotes sobre as virtudes degeneradas de um fascista, peço que façam assim: Perguntem aos mortos, aos desaparecidos, o que eles acham? E é porque não incluo, aqui, quem sobreviveu a choques elétricos nos ovos ou baratas enfiadas na vagina.

Pois bem. Por qual motivo nenhuma comissão da verdade foi instituída para saber dos mortos e desaparecidos das carnificinas do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Crato? Aquelas 400, 800, mil almas nunca importaram?

Foi um escárnio tão medonho quanto a matança e o sumiço de opositores do 64-85. Diria até pior. Se é que se pode comparar inclemências e medir brandura.

No caso do Caldeirão do beato José Lourenço não se tratava de uma guerrilha, era um povoado de homens, mulheres, caboclos, beatos, crianças, pretos, velhos e rezadeiras. Ex-mão de obra explorada dos coronéis fazendeiros do Nordeste.

Getúlio, seus coronéis, a igreja católica de Fortaleza e a imprensa inventaram uma União Soviética no sítio do Padre Cícero. O ditador - seja ele um civil, um cabo, um general ou um capitão -, geralmente, é um tosco. Ainda hoje é assim. Se for um doente de direita, terá certeza que Chapeuzinho Vermelho é "comunista".

E assim foi com o cipoal de agricultores que plantava, comia, vestia, morava e rezava sem Vargas. "O Caldeirão era uma casa de barriga cheia", recontou o sobrevivente Antônio Maria Morais no cinema de Rosemberg Cariry.

Não há lista dos 400, 800, mil mortos e desaparecidos do Caldeirão do beato José Lourenço durante o bombardeio e a invasão por terra dos homens de Getúlio, em 1937.

O jornal até nominou um coronel e sua volante "assassinados por fanáticos", dias antes da bala comer, na Floresta do Araripe. Lugar onde se perdeu a cova comum dos devotos sumidos de Mãe das Dores, do Padre Cícero e do beato Zé Lourenço - um preto paraibano, filho de alforriados.

O passado vai e volta! Perguntem aos mortos e desaparecidos do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto...

Perguntem às índias e índios dizimados (no Brasil) desde as invasões europeias; aos pretos escravizados; aos mortos e desaparecidos de Vargas; aos mortos e desaparecidos de 64-85... Perguntem o que acham da boa intenção dos regimes autoritários?

Foto do Demitri Túlio

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