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Soprava um ventinho de lençol
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Soprava um ventinho de lençol

Tipo Crônica
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Queria ir de Amazônia, mas vou de uma goiabeira que viveu por muitos anos no quintal lá de casa. Primeiro dizer, serviu de dormitório para gerações de galinhas de minha infância.

Perto de escurecer, se encaminhando para travessia do breu, o que era de pinto querendo ser frango, galo velho, noviço, galinha feita e franguinha... se aperreavam para subir à goiabeira. Se demorassem, ficavam ariadas, deixavam de enxergar.

Do chão para o jirau, do jirau para o limoeiro, do limoeiro para os galhos mais confortáveis e se aquietar até amanhecer mais um dia de galinha e outro dia de pé de goiabeira.

As galinhas mais fortinhas, geralmente as de granja, não conseguiam voar nas alturas. Ou ajudávamos, trepando-as por lá ou inventávamos poleiro rente ao chão para pernoitarem e não quebrarem as pernas.

Vida de goiabeira e vida de galinha aparentavam ser melhores do a que a vida de menino. Não precisavam fazer prova bimestral, não tinha o perigo de serem chamadas à lousa para resolver problema de trigonometria nem eram obrigadas a ir ao catecismo, todos os sábados, à tarde. Bem na hora do racha.

Davam goiabas quando era no tempo. Tanto aos pássaros, quanto aos que pediam do muro do oitão. Servia de sombra e, à noite, por causa dos galhos abundantes - só lá em casa - soprava um ventinho de lençol.

As galinhas, aprendi com elas o que era óvulo, ovo ou zigoto. E quis saber o que vinha a ser um espermatozoide e por que alguns ovos não conseguiam vingar. Tudo poderia ter parte com a falta de delicadeza dos galos.

Terminei gostando de pássaros porque ficava curioso com as visitas à goiabeira. E acabei indo ler um dicionário, necessitava saber qual era o nome de quem pousava ali para bicar as goiabas ou fazer ninhos.

Ia pra debaixo da goiabeira e fui aprendendo a soletrar e escrever sanhaçu, pitiguari, azulão, sibite, rolinha-fogo-apagou, surucuá-da-barriga-vermelha, corvo-com-a-barba-azul ou cancão, rouxinol (roxinó), cabeça-de-fita, ferreirinho-relógio...

Uma goiabeira foi muito importante na minha vida, imagine uma Amazônia!

Melhor dizendo, devo parte de minha infância às árvores com quem brinquei. Aos rios onde quis ser um pirarucu gigante, aos passarinhos que nunca deixaram de me avoar. Menino avoado! Muitos me elogiavam...

A goiabeira lá de casa morreu bem velhinha, soube da notícia. Já não morava mais com ela e meus irmãos, mas disseram que encerrou seus ciclos sem nunca ter levado uma machadada nem ter sido tomada pelo fogo... Que a natureza a tenha!

Intencionei uma missa, um culto e uma gira pra ela. E fiquei ali, só recapitulando as galinhas trepando nela quando à tardinha ia indo se aquietar.

Foto do Demitri Túlio

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