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O que não tem raiz nem nunca terá
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O que não tem raiz nem nunca terá

Tipo Opinião
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Ia escrever sobre umas 20 árvores que tenho na varanda do apartamento, lá é proibido desmatar. Décimo quarto andar de onde avisto, quase todo dia, três urubus habitués, um gavião-carijó que sonoriza fantasma em algum lugar, bem-te-vis nas antenas, algazarra de periquitos e o agradável canto de sibites e sanhaços.

Também escuto buzinas, arranques de automóveis, bate-estacas de mais um prédio rebentando na Aldeota, som de brocas, marteladas, baticuns, e (acho) o barulho daquela máquina gordinha que mistura cimento e brita.

Algum cachorro late e outro responde e a descarga, sem miolo de algum motoqueiro apressado, irompe a escuta absoluta. Mas, segundos depois, volto a ouvir um esmeril da construção civil faiscando e, talvez, o deslocamento de um avião em despedida. Não é alguém que chega. Tem uma aeronave que passa em frente ao 14º e a aeromoça me acena.

O vento é outro som que não faz silêncio, vem do mangue do Atlântico. Há horas em que entra esvoaçante, derruba o que não tem raiz nem nunca terá. Uma hora sopra da Praia do Futuro, bem longe daqui. Outra, da Praia de Iracema, entra pela esquerda do prédio de bacanas (onde vivo) e vem alvoroçado em agosto a voar as calcinhas do varal.

Agosto! Não acredito no ebó que, covardemente, botaram nele. Não é verdade ser o mais triste. Não é honesto dizer que os romances e os casamentos só se desfazem durante seus "longos" 31 dias. É do tamanho dos outros e, por esse lado do mundo, tem mais luz, amanhece mais cedo e demora para escurecer às 18.

Não é verdade que as pessoas só escolhem agosto para se suicidar. Há também os que transam intensamente ou seguram o gozo pra demorar bem muito a viçassem. Viçar é melhor que se lamuriar e ficar abetumado. Há quem faz aniversário e se toca em samba. Acho que goza! Também queria.

Um cheiro de fumaça chega aqui. Não é possível! A Amazônia não teria pernas pra subir até o Semiárido no Litoral, no décimo quarto andar. Talvez seja a Caatinga queimando pizza ou o self service na Torres Câmara e entorno. Há também a padaria da Heráclito Graça com Rui Barbosa, onde, às vezes, compro memórias.

Não tenho vontade de ver meu corpo pulando do 14º. Não deixaria sozinhos os jasmins miúdos que me perfumam o feminino nem as malvas que impregnam as mãos e dão vontade de não parar de cheirar alfavaca. É esperançoso.

Há também três pequenos pés de ata, um mamoeiro anão e seis ora pro nobis. Uma orquídea, uma moringa, um boldo indiano e vários pezinhos de cítricas. Tangerinas e laranjas que chupei e enfie as sementes. Uma palma, um mandacaru (de um ex-romance) e espadas de São Jorge ungidas por Saulo.

Ouço muitos textos do 14º andar querendo vir, enquanto escuto essa banda da Cidade. Uns rascunhos raivosos, querendo briga, fazer guerrilha. Outros tranquilos, pedintes de paciência e carne batida na taboa por alguém do prédio.

Em um dos textos, aparece o professor Cândido. Reitor à força, na marra. E penso no drama de ter sido rejeitado pela maioria. Não ter sido o mais votado na consulta, o escolhido democraticamente na Universidade e ter se rendido apenas à vaidade de ser magnífico...

Um vem-vem ou fim-fim se amostra, cantando, para uma fêmea em algum lugar de uma das copas verdes de um dos pés de oitis da Rui Barbosa. Vai ter dança no pau do tronco grosso, vai ter sedução entre passarinhos. Ouço, daqui, do 14º.

 

Foto do Demitri Túlio

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