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O divino em vão
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O divino em vão

Tipo Crônica
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Uma amiga fez o favor, na semana passada, de me enviar um vídeo. Até aí, nenhuma novidade. A cada minuto do dia, centenas deles nos invadem e não sei como aguentamos tanta besteira e tanta informação.

Era uma conversa entre o ator Lázaro Ramos e o pastor Henrique Vieira. Confesso, nenhum dos dois estava no meu quintal de interesse ou nas esquinas por onde ando. E sobre o rapaz evangélico, pouco tinha ouvido falar dele.

Parei para assistir por causa de Janaína de Paula, uma amiga de revoadas amanhecedoras e que nos desencontramos sempre por aí. Temos cidades um do outro em cada um.

Pois bem, Lázaro Ramos fez uma pergunta recorrente e que, geralmente, é respondida com uma caçamba de retóricas. Indagou ao pastor, também negro, "o que era Deus para ele".

Esperei coisas prontas, lugares comuns, citações bíblicas ao pé da letra, pieguices, milenarismos e definições enganosas para angariar simpatias. Mas não. Veio com um amor encarnado em possibilidades.

Deus, ele ou ela manifestada, talvez escape de qualquer resposta e seja um passo indefinido. Talhou mais ou menos assim.

Imagine se Deus fosse, realmente, o professado por quem defende a tortura, por quem exalta o torturador, por quem desaparece com a vítima e espezinha, anos depois, os silêncios da família?

Deus seria o absurdo de predestinar alguém tomado pelo preconceito para liderar um povo? Para odiar o amor possível entre um homem e outro homem?

Por alguém que não reconhece, natural, o beijo entre duas namoradas e a ventura de uma vida?

O endereço de Deus na terra é onde o amor encarnado se manifesta e se materializa. A frase é de Henrique Vieira.

Deus, portanto, talvez nunca será uma doutrina, um dogma. Nem será território maior ou restrito a uma única experiência religiosa. Outra vez Vieira.

Não existe, além da farsa e do embusteiro, nada "terrivelmente evangélico", católico ou seja lá qual percurso de crença.

Fosse assim, Deus seria a maldade volante na existência. O controlador de tudo e de nada e a permissão para se produzir o misógino, o miliciano, o homem que ameaça o indígena e sua terra?

Minha crença é volátil. Já escrevi por aqui. Deixou de acreditar no Sagrado Coração de Jesus apenas pendurado numa parede do Semiárido e lindamente descrito para uma fotografia.

Mas feito o pastor Henrique e a encíclica Laudato Si, do papa Francisco, "eu creio com raiva. Eu creio quase não crendo, mas não conseguindo deixar de crer".

Deus, depois que estou ficando cada dia mais antigo, não pode ser apenas um mágico de Oz. Todo poderoso sem ser. Porque essa entidade abstrata, alojada em um céu após um velório, já não voga mais.

Talvez, modo o pastor, creio no divino "porque ele vive e morre junto com a humanidade. Todo poderoso não faz sentido. Ele é todo amor, todo frágil e demasiadamente humano".

 

Foto do Demitri Túlio

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