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Contos de Desaparecimento
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Contos de Desaparecimento

Tipo Opinião
Arte sobre óculos de Frei Tito e criança brincando com galinha ao fundo (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Arte sobre óculos de Frei Tito e criança brincando com galinha ao fundo

Tia Nildes sofria enquanto vovô matava a galinha. Puxava o pescoço da bicha até o joelho dele e se ouvia o estalinho do fim. A galinha, criada desde pintinho de feira, se estrebuchava e um talho no gogó, feito com faca amolada, a fazia sangrar numa vasilha até que ia parando de disputar com a morte.

A gente nunca aprende a morrer. Nem sei se é para aprender. E quando meu tio Alencar se foi, a família entristeceu num silêncio devastador. Antes de deixar de viver, ainda se debateu com o próprio corpo violado por torturadores.

Tio Alencar também sofria quando iam escaldar a galinha na água escalpelante. Era para arrancar, pena por pena e, depois, sapecá-la um pouco na boca do fogão. Queimar qualquer canhão que ficasse no corpo já depenado.

Mas também tinha uma felicidade. De reunir-se ali, num magote de gente simples, mesmo à custa de outro ser vivo e descobrir coisas que se aprendem em família. Vovô abria com cuidado a galinha e dentro, na maioria das vezes, havia cachos de bolinhas amarelas. Pequenas e grandes.

E fui saber ali, nos anos 70, que aquilo eram ovos ainda se formando nas entranhas da franga que estava para começar uma postura. Uma porrada de pintinhos que poderiam ter rebentado e os interrompemos.

Tanto tinha uma melancolia, por causa do triste fim da galinha de terreiro e das ninhadas que nunca teriam, como havia um prazer de comer aquelas gemas cozidas e tomar um copo de caldo de feijão quente. Era um costume, um rito de quintal.

Meu tio Alencar deu para padre. Dominicano. Na época, não entendia muito quando repetia que havia vindo para expiar as impiedades da Inquisição. Tinha o propósito de rezar por milhões de executados e agir contra verdugos reencarnados.

E cumpriu, o tanto que viveu, a opção preferencial por quem precisava ser escondido. Por quem carecia ser protegido da morte sofrida, da indignidade de quem tinha (e ainda tem) o prazer de vangloriar o torturador.

Um desgraçado desses, talvez um infeliz que nunca tenha vivido rituais de quintal nem a hora do almoço ao redor de uma penca de irmãos, parentes e agregados, fez crueza com existência de tio Alencar. Porque o torturador não é gente.

Meu tio se bracejou numa corda, ouvi histórias, li relatos, senti o aperreio por tia Nildes cheia de memórias. Na França, eles não tinham o hábito de se reunir no quintal para matar uma galinha, para raspar um coco, para assar castanhas de caju nem chupar dindim ou comer cajarana verde com sal.

Fui à despedida do que restou do corpo de tio Alencar, vinte e tantos anos depois de sua imolação. No São João Batista, em Fortaleza, um túmulo simples e gente deixando pedras pequenas na lápide e pedidos ao mártir.

(Um conto, misturado com memórias de quintal, baseado no martírio do frade cearense Tito de Alencar)

 

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