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Morte e vida Sapiranga
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Morte e vida Sapiranga

Tipo Opinião
0305demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0305demitri

Na Sapiranga, bairro que a cartografia social se desenha entre condomínios fechados e comunidades amontoadas em antigas ocupações, longe e perto de uma das margens do Cocó, num trecho onde o cotidiano tem carência, dois personagens andam teimando contra a pandemia do coronavírus.

Teimando no sentido de incomodar-se e fazer algo para conter o vírus da Covid-19, o quanto for possível e a peste, vinda das bandas da Aldeota, não se espalhar pela maioria das casas geminadas... E desviver um infeliz.

Lá, nem todo mundo tem condição de "ficar em casa". E home office era coisa para bacaninhas descolados ou nativos digitais. Antes, charme. Hoje, uma invasão. Existe também, na comunidade, a cota bolsonarista de ignorância.

Wander Alencar, um líder comunitário que já fez tudo pra ser eleito vereador (não há problema no desejo se a intensão for coletiva), e o compositor Artur Américo, distribuíram mil máscaras para idosos e outras pessoas mais vulneráveis à Covid-19.

Casa em casa, a surpresa das mil máscaras é alguma coisa, sim, numa comunidade de 74 mil pessoas. A Sapiranga é um bairro demarcado por facções e pela disputa miserável, indo e vindo, de uma fatia do tráfico de drogas em Fortaleza.

Mazelas por lá não faltam e o Aedes Aegypti ou novo coronavírus encontram condições de sobra pra tocar o terror. Pois bem, Wander recebeu as máscaras de alguém dos moradores dos condomínios de classe média que ficam acima da margem do Cocó.

Pediram anonimato, não quiseram os créditos da caridade. E caridade também pode ajudar o caridoso a não se contaminar num bairro onde todo mundo está no mesmo barco. Mas esse pensamento é meio escroto, reconheço.

Mas fazer o quê? A máscara é uma espécie de óbolo antecipado pago a Caronte para desviar a barcaça que transporta almas dos recém-mortos. Uma tentativa de crer em menos óbitos. A Covid-19 destroçou as convicções do mundo dos vivos e até dos mortos sem direito a velório.

Wander é um alguém que fica tentando. Ou tenta ou sucumbe. Inventou até campeonato de bila para segurar crianças e conversa com as facções para buscar uma paz (sem voz) nos territórios. É o que pode em algumas quebradas.

Pois bem, vem do Comitê Internacional da Cruz Vermelha de Fortaleza outro exemplo que não é só caridade e dó do lascado. E seria um suspiro de vida ver o Comitê misturado ao povo da Sapiranga.

Na semana que passou, o escritório da Cruz Vermelha entregou (estou meio enjoado da palavra "doou". Um verbo tão honesto, mas desgastado) máquinas de costura para o sistema prisional do Ceará. E também matéria-prima para a produção de 44 mil máscaras para presos e servidores.

Isso é perspectiva em meio às incertezas da pandemia e transcende a piedade em relação aos miseráveis. A Covid-19 está nas penitenciárias cearenses, dentro e nas muralhas. Sem controle, entre prisioneiros e agentes.

Mesmo que o Estado diga que tem as rédeas do vírus entre os mais de 23 mil presos num sistema superlotado, não tem. Daqui a pouco, estaremos falando em hospital de campanha entre as penitenciárias. Imagine a mobilização de dezenas de escoltas para presos em hospitais públicos?

É assim. Não é aquela idiotice de "ensine o homem a pescar em vez de dar o peixe". Não. É fazer parceria, para além da esmola. Caridade é preciso, mas quem pode e tem excedente pode projetar perspectiva.

Foto do Demitri Túlio

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