Logo O POVO+
Elomar diviniza o sertão profundo
Foto de Flávio Paiva
clique para exibir bio do colunista

Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Elomar diviniza o sertão profundo

Tipo Crônica

No “Concerto de Santo Reis na Longa Ausência”, transmitido ao vivo pelo YouTube no final de tarde do domingo passado (20), o compositor e cantor baiano Elomar Figueira Mello, 83 anos, convidou a plateia virtual a dar Glória a Deus pela experiência da escuta e da contemplação. Ao colocar com simplicidade a sua sofisticada arte, ele ofereceu sentido especial à existência do sagrado no sertão.

Como todo violeiro que se preza, Elomar iniciou a apresentação pedindo permissão: “Sinhores dono da casa / O cantadô pede licença / Prá puchá a viola rasa / Aqui na vossa presença (...) I antes porém eu peço / A Nosso Sinhor a bença”. Tem uma teologia explícita em seu cantar, que faz o Nordeste soar divino, purificado, bíblico, rompendo as fronteiras do espiritual e do profano em uma estilística da fé.

A voz carregada com a sabedoria dos tempos e o domínio calejado do violão, em malungada de sons com a Camerata e o Quarteto Lua Nova, executam “Noite de Santo Reis”, relíquia musical gravada no antológico álbum Consertão, com Paulo Moura, Heraldo do Monte e Arthur Moreira Lima: Aleluia, Aleluia, Aleluia!!! Cântico de louvor selando a comunhão do sacro com a arte.

O concerto de Natal elomariano foi cheio dos dramas, das graças, alegorias e clarividência do reino laico e santo da caatinga, enquanto universo espiritual cruzado por caminhos que, mesmo quando tortuosos, levam ao encontro de Deus. “Vem amiga visitar / A terra, o lugar / Que você abandonou (...) Ouço em toda noite escura / Como eu a sua procura / Um grilo a cantar” (...) Ao Senhô peço clemência / Num canto de incelença / Pro amor que retirou”, diz linda e tristemente a cantiga do amor retirante.

Elomar não prega idolatrias, ele presentifica Deus por meio das relações harmônicas, dos contrastes e religações constantes no seu cancioneiro e peças operísticas. Em sua obra, Deus é som, verbo, o invisível que toca a alma pelo que ela tem de infinito no coração das criaturas. Nos versos “As lagoa encheno e os bicho cantano / Cantigas de amô / E você só dormino (...) Meus olhos tem pena de ver tantas beleza / E ninguém pra vê”, ele lamenta o desprezo dado à bondade divina na natureza.

Para encerrar o concerto, que durou duas horas de árias, canções, cantos de incelença (réquiens), causos e amor divino, Elomar terminou a apresentação a portas fechadas no Teatro Municipal Carlos Jeovah, em Vitória da Conquista, com sua célebre “Cantiga de Amigo”: “Lá na Casa dos Carneiros / Onde os violeiros / Vão cantar louvando você”. Isso porque a amizade, na vida sertaneja, faz parte da interpretação sagrada do viver.

Os andarilhos cegos, cantadores, videntes e profetas, aqueles que, como lembrou Elomar, costumavam andar pelo mundo guiados por meninos ou mocinhas, filhos ou netas, são personagens da poética da sua obra, por serem anunciadores das bramuras da humanidade. A antevisão dessas pessoas projetou acontecimentos, como “a escassez de todo o bem”, na afirmação do bardo baiano.

O “Concerto de Santo Reis” foi um espetáculo constituído por peças de grande beleza musical e linguística, representativas do forte sentimento cultural e religioso de uma gente, cuja fabulação faz com que o imediato possa ser eterno. A arte de Elomar carrega traços do sertão profundo, onde as adversidades estão sempre subordinadas à esperança. Uma obra única e fecunda, que ressoa além de si, como um ato de fé, de feliz Natal.

Foto do Flávio Paiva

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?