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A batina do Bispo
Hélio Leitão

A batina do Bispo

Edição Impressa
Tipo Notícia

O mundo perdeu Desmond Mpilo Tutu, morto aos 90 anos, ícone da luta contra o apartheid, o regime de segregação racial que se instalou na África do Sul nos idos dos anos 1948, após eleições em que se sagrou vitorioso o Partido Nacional, partido político que, associado à Igreja Reformista Holandesa, formava a representação política e social da elite branca e minoritária do país. Eram holandeses os colonizadores daquelas terras, ali chegados no século XVII a bordo dos navios da Companhia das Índias Orientais, uma das primeiras empresas multinacionais de que se tem notícia.

A partir de uma leitura muito peculiar da bíblia criam na supremacia branca, promovendo a institucionalização da apartação social entre brancos, negros e indianos, negando a estes dois últimos o direito à cidadania e aos mais básicos serviços públicos. Um regime que perduraria até os anos de 1994, resquício vergonhoso da boçalidade e crueldade do colonizador europeu em terras africanas.

Em torno do CNA - Congresso Nacional Africano, agremiação partidária que mais corajosamente promoveu o enfrentamento - muitas vezes pela força, do regime racista que naquele país da África austral fizera morada, cerraram fileiras as mais expressivas e combativas lideranças da maioria negra, como o advogado Nelson Mandela, Oliver Tambo e Walter Sisulu.

Em meio à agitação política pelo fim do apartheid desponta no seio da sociedade civil, altiva, a figura do clérigo Desmond Tutu, arcebispo da Igreja Anglicana sul-africana. Pacifista, defensor intransigente dos direitos humanos, opõe-se de modo vigoroso, mas não violento, àquele estado de coisas.

Ecoam pelo mundo as manifestações públicas e protestos que liderou, fazendo tremer, à força do peso de sua liderança moral, as pilastras de sustentação do regime. Sua luta ganha reconhecimento internacional quando lhe é outorgado o Prêmio Nobel da Paz, em 1984.

Posto abaixo o regime contra o qual lutou, o bispo Tutu, como era conhecido, cumpre papel decisivo no processo de pacificação social que se ergueu sobre os escombros da decaída ordem política. É-lhe confiada a presidência da Comissão da Verdade e da Reconciliação, o mais importante e efetivo experimento de justiça transicional jamais realizado.

Se não logrou construir uma "nação arco-íris", como sonhava, em que as diferenças não somente fossem respeitadas, mas valorizadas, certo é que sua contribuição foi decisiva para que a verdade histórica daqueles tempos terríveis viesse à tona e alguma concórdia fosse construída em meio a tantas feridas e ódio.

Talvez a grande lição que se possa extrair de sua vida e militância seja o emprego do perdão como arma política. Costumava ele dizer que "Se queres a paz, não fale com teus amigos. Fale com teus inimigos".

Uma referência moral e espiritual que restará gravada indelevelmente no panteão dos grandes humanistas que passaram pela terra. Um exemplo fundamental, nestes tempos tão faltos de exemplos. Como cantou o poeta Gilberto Gil em sua Oração pela África do Sul, "Salve a batina do bispo Tutu".

 

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