Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Passo a manhã à procura de um livro. Reviro lombadas, afasto colunas inteiras, separo antigos de novos, mexo com o que estava assentado há meses ou anos, sujo as mãos com poeira e depois as lavo. Conservam-se ásperas mesmo depois de enxaguá-las com sabonete.
Não o encontro, embora tenha certeza de que está aqui. Talvez na sala, no quarto ao lado, na despensa sei que não porque já a vasculhei. É possível que o tenha emprestado, que o tenham roubado, que o tenham destruído? Tento lembrar de seus contornos, o título é uma pista, mas o nome é insuficiente, é material por demais resvaladiço. Num labirinto, o nome é de pouca valia. E o quarto tem se tornado como um círculo dentro de outro dentro de outro, espiralando-se ao infinito.
Ultimamente tenho perdido mais do que posso lembrar, então maldigo a desordem do quarto. Nenhuma disciplina ordena esses livros, nenhum protocolo de arrumação, cada qual disposto como convém, solto ao acaso, deixado de costas ou frente à própria sorte, enfiados em caixas remetidas por mim mesmo vindas de outro mundo. E aí, quando careço de achar o que preciso, levo horas agachando-me e levantando, suspendendo e devolvendo, numa coreografia que tem se repetido cada vez mais.
A filha se aproxima, o papai está procurando livro de novo, diz como se lamentasse, mas talvez já tenha se acostumado a essa imagem, o pai à procura desse livro que falta. Gosto de imaginá-la assim, projetando em mim uma natureza borgiana. Digo que sim, que procuro o livro perdido, e peço sua ajuda, ela se aborrece depois de cinco minutos e sai. Então começo a pensar que esse desarranjo é proposital, que mantenho o quarto nesse estado para que possa me perder à procura do que talvez encontre, talvez não, fazendo do desarranjo uma forma própria de leitura, como o labirinto da biblioteca ideal.
Me pergunto se há modelos próprios de disposição e catalogação que eliminem por completo o risco de perder-se, mas mesmo nesses casos é possível que o cartesiano das formas dissimule um abismo interno, as dobradiças do olhar evidentes apenas se viramos as páginas e encaramos mais de perto a morfologia dessa matéria viva.
Esse livro, por exemplo. Tenho certeza de que o tenho aqui, mas esse aqui é muito amplo quando se trata de situar um objeto no espaço e no tempo, ainda que diminuto como o do quarto neste hoje que é agora. Como detetive, procuro pegadas. Consigo recordar quando o comprei na livraria e o trouxe para cá, embalado na sacola, a nota contendo preço e horário, uma operação inscrita na memória como gesto entre o maquinal e o afetivo.
Vejo a mão tocando a superfície lilás e os olhos grudados na fonte impressa em corpo fino. Está por aqui, murmuro, como se o farejasse e o sentisse escondido, rindo num canto, feito um desses gatos de contos de fada que ficam à espreita numa brecha da casa. E logo desisto, adio para amanhã, talvez para quando acordar e de novo me colocar nessa posição assombrada de quem investiga.
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