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História da casa
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

História da casa

Tipo Crônica

Nove meses na casa. Habituei-me a seu ritmo, pensei que fosse mudar, mas mudei eu. Respiro como a casa, levanto e deito a seu modo. Se lhe acontece de adoecer, adoeço também, como no fim de semana em que o liquidificador se danificou e uma lâmpada queimou, e logo eu caí acometido de sabe-se lá que enfermidade. Tinha febre e vomitava, mas agora estou melhor, a casa está melhor.

Às vezes de madrugada passo pelo corredor e olho para o quarto escuro onde escrevo rodeado de objetos empilhados e me vejo sentado. Eu não levantei, continuo lá, batucando no teclado, parte de mim não se descola da cadeira, parte de mim aderiu à casa e não se move desse espaço doméstico.

Respiro a casa, os pulmões se dilatam sincronizados com as cortinas. Se elas esvoaçam, expiro, se se encolhem, inspiro, e assim meu corpo comunica ao corpo da casa a sua presença. Mais que isso, a sua aderência. Os rangidos da casa coincidem com os sons que produzo dormindo.

A casa é grande para os padrões de outras casas pelas quais passei. No banheiro há um grande espelho retangular, de modo que posso olhar de longe para o espectro. Sou eu, sendo outro. É outro, sendo eu. A casa opera como um corpo vivo, responde a sei lá que energias que emanamos.

Lembro de uma noite em que metade dos eletros pifou. Simplesmente se recusaram a funcionar. Trocamos tudo no dia seguinte, a filha ajudando a desempacotar e fazendo das caixas outras casas.

Ao entrar pela primeira vez, senti como se morasse na casa havia tempos e só agora, depois de viajar ou voltar de onde tinha estado, retornava ao seu interior. Mas a casa machuca, a casa é vingativa, talvez cruel. Ameaça se a ameaçamos.

A casa é superpovoava de objetos visíveis e não visíveis, peças de jogos e de roupas esquecidas em toda parte, pó acumulado em regiões que não costumamos faxinar, enfim, um ecossistema particular formado pela junção de tudo que carregamos por querer ou não querer.

Nesses meses sem sair, passei a conhecer melhor a casa, seu humor, textura, os ruídos que faz na alta madrugada, os gostos, mesmo as zonas inespecíficas nas quais sinto que não podemos estar, os interditos. A língua da casa.

Confundo-me na casa e finjo esquecê-la quando extenuado, peço que ignore os pares de calçados largados por todo lado, as roupas estendidas no varal na sala para que sequem ao vento que entra farto pela janela, a instalação elétrica precária, a mesa mal posta, a luz estridente, a falta de um desodorífico que atenue os cheiros dos corpos confinados.

No fim de semana trouxemos areia da praia nos bolsos e a despejamos no chão da casa, o atrito de materiais, o travo salgado do contato, o fino do pó depois varrido para um canto do taco escuro e lá permanecendo, agora também parte da casa, como uma pele sobreposta. A casa é também acúmulo.

Tubos de xampu, restos de sabonete, panelas, frutas cortadas nos recipientes, mesas, toalhas, xícaras de café, pratos recolhidos no armário, uma extensa coleção de palavras que fui anotando cuidadosamente a fim de que a casa conhecesse a casa.

Porque às vezes a casa estranha a própria casa, não se reconhece nela, pede que me apresente e diga meu nome, e então eu tenho de intervir e fazer recordar que a casa tem uma história, a casa foi construída com um propósito, a casa chama-se casa porque antes de nós alguém a chamou casa e instaurou no espaço essa brecha.

 

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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