Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Olá, pessoal, sejam "todes bem-vindes" à sala, saudou a host da reunião dirigindo-se a todes e a ninguém em especial, ao que foi correspondida por uma onda de murmúrios assentindo à introdução após a qual foi preciso desligar o microfone de todes pela primeira vez entre tantas naquelas próximas duas horas e meia de bate-papo.
É com prazer que recebo vocês aqui para partilhar esse afeto vital em tempos de fratura social, um encontro em tempos de desencontros, continua a anfitriã, e é como se lesse uma palestra do Karnal no teleprompter.
Antes de começar de fato, quero falar sobre a experiência de reunir aqui uma gente a quem admiro, pessoas cujo trabalho me ajuda a entender o abismo em que estamos, numa urdidura de nexos sempre muito complexa.
Franzi o cenho. Detesto "urdidura", é uma palavra que uso raramente e apenas quando desejo parecer empolado, apelando a esses maneirismos acadêmicos que ganham vida própria e saem por aí se multiplicando feito Gremlin nas salas de reuniões virtuais nestes "tempos de pandemia" – outra expressão abominável por si só.
O som de um cano de escapamento de moto atravessa a sala. O convidado, um psicanalista de certo renome, se desculpa e volta a desligar o microfone. Quando lhe é facultada a palavra, fala por meio minuto com o áudio desligado, apenas movimento labial, até que se dá conta da falta. Desculpa-se novamente e recupera o fio da "narrativa", desenhando aspas no ar.
Duas coisas que abomino: aspas aéreas e narrativa. Hoje tudo é narrativa, nada é narrativa, há narrativa sobre o déficit de narrativa e narrativa sobre a superabundância de narrativa, narrativa sobre a própria possibilidade de narrar, segue a mediadora do diálogo, uma jovem pesquisadora cujo campo de trabalho opera deslocamentos infinitesimais na ordem da biopolítica, de maneira que nunca sei ao certo se entendi bem.
É preciso "decriptar" os silêncios cifrados, atalha um artista com formação em Comunicação Social e doutorado em Antropologia. Faz-se silêncio.
Nesse momento, olho meu reflexo na tela do notebook recém-comprado e me imagino sendo visto do outro lado por essa audiência atenta, os livros empilhados atrás de mim. Me pergunto se minha estante é adequada para o encontro, o equivalente atual àquela dúvida antiga: será que eu tenho roupa para isso? Declaro intimamente que não tenho.
Eu pediria que desligassem o microfone, alguém pede gentilmente. Supondo que sou eu, ligo o microfone em vez de desligá-lo, o que abre esse canal de debate ao imponderável dos sons do meu quarto: o gato, a filha, uma TV ligada nos "Jovens Titãs". Me distraio, tento conectar o desenho com uma leitura recente, mas sem sucesso.
A "host" desabilita meu áudio, e sinto como se tivesse sido condenado sumariamente num rito kafkiano. Melhor assim, me consolo, não há margem para o acaso quando um poder central exercer controle sobre nossa potência. Penso nisso por uns segundos: o fluxo desembestado de pensamentos sobre os quais não tenho controle em tempos de pandemia (imaginem alguém fazendo aspas aéreas), enquanto, a meio palmo do meu nariz, se desenrola um diálogo pleno de afetos para o qual eu deveria estar integralmente voltado.
Mas só consigo pescar frases pela metade e me deixar escorregar do cabelo despenteado de alguém ao súbito ronco que escuto no meio de uma fala crucial - sobre o que mesmo?
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