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O Batman
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O Batman

Tipo Crônica

Faz tempo, fui ao cinema pela primeira vez. Era 1989, tinha portanto nove anos. Estava acompanhado ao pai, que me levava pelo braço, se me lembro, enquanto caminhávamos por uma rua sem asfalto. Eu vestindo a camisa do Batman e à espera da estreia do filme do Batman, o meu primeiro filme no cinema, talvez o segundo. Confirmo agora; o segundo, o primeiro mesmo havia sido “Mestres do Universo”, nome do filme do He-Man. O terceiro foi “Lua de Cristal”, com a Xuxa.

Mas quero me concentrar no Batman. Não propriamente no filme, de que me recordo quase tudo, o espanto em ver pela primeira o batsinal iluminando uma sala escura, mas na expectativa para o filme, os passos que dei antes de chegar lá. A rua, a caminhada, o modo como acompanhava sem reclamar ao pai e ele a mim, cada qual desempenhando muito bem seu papel.

Uma espera interminável, aquela. A mão suada grudada à dele, o conforto, porém, de saber-me a caminho do cinema, onde iria assistir ao Batman, que não era meu herói predileto porque nunca gostei de histórias em quadrinhos, mas era o Batman. E, como Batman, sempre exerceu fascínio numa criança. Um homem-morcego, mascarado obscuro cuja face é metade à mostra e metade velada. E estávamos perto, muito perto. Faltava uma ninharia para chegarmos. Apenas uns poucos trocados. Talvez mais uma visita. Se lhe pagassem na próxima casa ou na seguinte, a cota estaria completa e o dinheiro, suficiente. Eu não entendia bem o que o pai fazia, mas sabia que precisava ir de casa em casa a perguntar se tinham algo a lhe pagar. Os moradores eram seus devedores e o pai, um cobrador a puxar pela mão o filho, que por sua vez esperava ir ao cinema para ver o filme do Batman ao lado do pai, o primeiro de uma série de filmes que veriam juntos dali por diante, o pai sempre interessado nos de luta.

Era 1989, eu tinha nove anos, não oito nem dez, mas nove. Usava uma camisa preta com um morcego amarelo no meio. Eu era o Batman, andava a me esconder enquanto o pai cobrava o que lhe deviam, o pai mesmo desconfiava de que eu fosse o Batman, que o arrastava ao cinema para acompanhar a performance do filho ciente de que o filho era o personagem que dali a pouco estrearia na tela diante dos olhos deslumbrados.

E então chegou-se ao total, um valor razoável. O pai mergulhou o dinheiro no bolso e anotou o nome da mulher e o preço, disse que voltaria no mês seguinte para recolher a prestação e lhe entregou o cartão. Depois fizemos o caminho de volta até uma parada de ônibus e da parada ao centro, onde pagamos por dois bilhetes para sentar em poltronas diante do imenso retângulo onde, em poucos minutos, começariam a exibir aquele filme pelo qual eu havia esperado. O filme do Batman.

A primeira cena: uma nave, a música estrondosa, o símbolo, se é como me lembro, pois na minha cabeça tudo se passou assim e, de lá para cá, jamais revi o filme, nem sozinho ou acompanhado. Talvez por medo de o encontrar ali ao meu lado. Ao pai.

Agora tomado à minha mão e não eu à dele, agora ele a se deixar conduzir por mim, já muito velho e doente, o pai muito próximo de estar muito longe daquele dia. Mas, antes, me pede para vermos juntos ao primeiro filme que vimos nos cinemas. Eu lhe digo que sim, vamos ver. Falo ao telefone.

Apenas hoje me sento no sofá para repassar cena a cena o Batman.

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