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Desaterro
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Desaterro

Tipo Crônica

Fui encarregado de contar a história da família, reatar um fio que se perdeu muito tempo atrás com a morte dos meus tios e o desaparecimento de uma tia, a morte da avó, a quem perguntava de onde tínhamos saído, de quem descendíamos, se tínhamos uma raiz, uma ramificação que fosse, um pedaço de chão onde se pôs a matéria viva a que se pode chamar de origem.

Porque era importante para mim entender que havia começo, deslocamento, uma geografia natal e um tempo antigo do qual se projetava o futuro, o tempo estirado de agora, o meu tempo.

Mas é difícil recuperar esses vestígios, retraçar uma errância, narrar a deriva, contar a ruína. É como remontar o desenho sem todas as peças, equipado com nada mais que as mãos que se esfolam ao cavar.

A família é esquiva também. Dela sei muito pouco, apenas o que fui acumulando no próprio corpo e na memória, nos guardados que arrebatei escondido como criminoso ao entrar num quarto ou abrir uma gaveta sem que dessem por mim naquela hora morna da tarde ou da noite.

De repente, saía com uma imagem, uma peça, um disco ou qualquer artefato que ajudasse a recontar e voltar aos anos de 1920 ou 1930.

Descobri então que o avô se evadiu quando pode, meteu-se noutro lugar, noutro estado, de lá não se tem sinal de vida ou morte, embora haja mais razões para crer em sua morte do que na vida. O avô como esse desaparecido, o homem a quem nunca víamos, o abandono desde sempre uma presença.

Poucos escritos, quase nenhum rastro, fotografias atiradas ao lixo, coleções de cartas perdidas, registros extraviados. E as figuras mais recentes que também se dissiparam porque as esquecemos entre tantas mudanças, em cada casa que habitávamos se retinha uma parte. Deixamos pegadas para frente e para trás. Tudo como se houvesse um esforço deliberado de apagar-se.

A família sem retrato na parede, sem patriarca, sem matriarca, um ajuntamento de pessoas cujo elo mais forte, o de sangue, há muito vinha minguando de geração em geração e disso restava o muito pouco que era eu.

E por isso eu procurava todo dia por caco de memória, tira de pano de vestido, uma panela, um chapéu guardado, uma muda de roupa, um estojo que a avó tenha usado, um anel que recebera de presente. Difícil contar uma história a contragosto de quem a viveu.

E a da família é como a da minha cidade, a de Fortaleza, uma rasura sobre rasura. Nela escreveu-se sobre o que já se tinha escrito, dificultando o acesso a esse ponto anterior, esse que busco por meio das sombras que vejo.

Mas é preciso encontrar nesse exercício de exaustão e desaparecimento uma grafia, ainda que seja a história de um findar-se, a história de impor a si e aos seus a continuidade de uma morte atualizada.

Afinal, na família, mais que a morte, foi a dúvida que sempre rondou, os mitos domésticos cercados de casos de dissolução física, escapes e desatinos, um disfarce de onde se veio, um apagamento. O mistério que tudo isso despertava ao ouvir fabulações do tio enfiado na mata, do primo invertido, da tia louca. Nenhum retorno, apenas partida, desaterro, como se descendêssemos de uma fantasmagoria, a origem como uma ideia movediça que se afastava quanto mais eu me aproximava.

 

Foto do Henrique Araújo

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