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Memória
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Memória

Tipo Crônica

Tenho medo de estar perdendo memória, não fatos ou coisas importantes, mas miudezas, o banal: um nome, uma historinha boba, uma trivialidade que antes vinha fácil e agora se esconde em algum lugar da cabeça, um escaninho desconhecido cuja chave preciso encontrar.

Essa é a impressão que tenho, a de que brinco de pega-pega com palavras ou tempos, tento encontrá-los, ora consigo, ora não, e quando ocorre de sair à procura e voltar de mãos vazias, fico preocupado. Mas uma preocupação leve, que encaro como uma quase travessura, como se um diabrete qualquer estivesse pregando peças enquanto eu me permito enganar, uma criança que desarruma peças e inverte os quadros na parede como provocação ao adulto que somos.

Outro dia, a caminho da aula de natação, esbarrei com um amigo da faculdade, que não via já tinha uns dez anos e a quem chamei genérica e estupidamente de "amigo", como quem cumprimenta um estranho numa parada de ônibus.

Enquanto conversávamos, uma parte do meu cérebro promovia uma varredura nas memórias recentes, enquanto outra parte se concentrava na conversa em si, respondendo o mais lentamente possível, de modo a ganhar tempo, sem, contudo, aparentar confusão.

O nome apareceria apenas duas semanas depois, enquanto faxinava um canto da cozinha de casa, me esforçando para remover cada pequena partícula de sujeira, num empenho inusual nesse período, mas do qual tenho gostado. Num lampejo, exatamente como dizem que essas coisas acontecem, tudo se iluminou, eu pronunciei baixo os dois nomes do colega.

O fato de que estivesse ocupado com tarefas do dia a dia, a cabeça descansada e sem obrigações senão essa de ajudar os membros superiores a recolher o lixo, me fez imaginar que, de agora em diante, tudo se passaria dessa maneira, e lembrar de certas coisas seria uma operação involuntária, algo contra o que eu não poderia lutar, apenas aguardar pacientemente e daí comemorar quando finalmente achasse, se achasse.

Perder faria cada vez mais parte da minha rotina do que achar.

Como quando perdemos algo, o tempo comido pelas beiradas, o rosto em gradativo processo de desaparecimento, todo cheiro apenas resquício de um cheiro, numa higiene corporal que lança camadas sobre camadas, pele sobre pele.

Então juntei cadernos e decidi anotar. Tudo. Comecei ontem. Palavras corriqueiras, datas, nomes, registros diários feitos com a finalidade de me auxiliar quando eu de fato precisar, como eu imagino que um dia talvez eu precise.

Palavras ordinárias. Mesa, sofá, banheiro, avó, xampu, cabelo, jogo, mãe, almoço, panela, brinco, braço, pai, chuveiro, piscina, pescoço, guarda-roupa, lençol, travesseiro e por aí vai.

Palavras gastas, como essas peças de roupas que preferimos a outras.

Foto do Henrique Araújo

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