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Caderno do esquecimento
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Caderno do esquecimento

Tipo Crônica

Anoto tudo que esqueço, cada pequeno acontecimento, o mínimo revés ou contratempo. Tenho fixação pelo gesto suspenso, o ato que falha, a falta, o elemento que se extravia.

Por isso o registro paciente do que não há, a anotação deliberada daquilo que tardou. Uma escrita que retrocede, não avança, quando muito gira sobre o próprio eixo, como planta que nunca se desenraíza e vento represado.

Lembro de ainda menino fazer a caligrafia. Desenhava a letra, caprichava a cada curva da vogal ou consoante, a mãe ao lado mantendo a seu alcance também um caderno no qual ia delineando sua escrita, que eu tentava imitar, sem conseguir.

Capa preta, impressão de que encerrava ali uma vida que se recusava a compartilhar comigo. Segredos, sim, mas por que deixá-los à vista? Eu não sabia. Tampouco a mãe dizia, ao final guardava na cômoda ou o carregava consigo quando ia ao centro da cidade, de onde passava horas para voltar.

Lembro de escrever: o que escreve a mãe? Era uma brecha que tentava ocupar, o espaço vazio que não incomodava, pelo contrário, despertava em mim essa curiosidade de, escrevendo, descobrir o que a mãe diria de si.

Na escola tinha orgulho de contar que tinha uma mãe cuja vida não se revelava por completo, uma mãe que tinha um caderno proibido, uma mãe cheia de lacunas, que não era como as outras mães, sempre cristalinas e expostas, mães de transparência evidente e incontestável.

Depois parei de escrever, de rascunhar essas ninharias. Perdi todos os volumes preenchidos durante esse tempo. A mãe também se desfez, atirou fora as folhas, os colecionadores embolorados, talvez tenha rasgado tudo. Entre nós sempre chega esse momento em que rasuramos todo o passado, como se o revogássemos.

Um dia, era Natal, lhe perguntei sem volteios: o que a mãe dizia ali? Levantou-se, recolheu pratos e copos, anunciou que tinha sono e foi deitar-se.

Antes, respondeu que era bobagem, não lembrava, mas que eu não devia me preocupar com isso porque na época eu era um menino e ela, uma mulher, e que mulheres têm suas questões que não interessam a mais ninguém, sobretudo a uma criança como eu era.

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Talvez fossem desenhos, acrescentou, talvez apenas riscos que eu punha no papel de ponta a ponta, talvez fosse a maneira que encontrava de fazer o tempo correr.

Ou talvez fossem palavras mesmo, de verdade, eu arrisquei, ao que a mãe respondeu com um sorriso, o mesmo que não diz que sim ou que não.

Antes de ontem, sonhei que recuperava o caderno, a capa já muito desgastada e as folhas amarelas. Eu o depositava em cima da mesa. Em seguida, exibia-o a minha filha, que abria as páginas com seus dedos finos. Dentro dele, linhas e linhas de palavras inventadas, um alfabeto próprio que nem eu nem ela entendíamos.

Mesmo no sonho preservava o seu segredo.

Foto do Henrique Araújo

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