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Objeto em trânsito
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Objeto em trânsito

Tipo Crônica

Alguém disse que é preciso "naturalizar o vácuo", ou seja, a resposta que se desfez não de modo deliberado, mas involuntariamente, resultado do acúmulo de demandas, de mensagens em múltiplas plataformas por 24 horas, num diálogo que não se interrompe em qualquer momento do dia.

Então me veio à cabeça que hoje estamos sempre devendo algo a alguém, por todo canto levamos essa agoniada sensação de que temos de responder e dar continuidade a alguma comunicação cujo início já perdemos, mas que segue suspensa, numa aflitiva lacuna que fica guardada num cantinho do juízo.

Um retorno, uma confirmação, seja de email ou mensagem de Whatsapp, no Instagram ou Facebook, um comentário numa caixa, uma ligação não atendida para a qual ainda não temos devolutiva à altura e por isso a estudamos mais um pouco. Mas é justo esse "pouco" que causa estridência e produz ruídos. Não há tempo para espera.

O fato de que exista um sem número de modalidades de interlocução apenas potencializa às alturas também os labirintos e becos sem saída, as hipóteses de silêncio e eventualmente os desentendimentos. Tudo resultado de um contínuo adiamento, de um pensamento do tipo: responderei depois, em algum momento retomo esse fio, que deixo de lado enquanto faço outra coisa.

É esse depois que hoje se tornou impensável. Nem mesmo no imediatismo do agora é possível esgotar essas incontáveis janelas que se abrem e alertas que sinalizam para um novo diálogo dentro de outro, dentro de outro.

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Daí o déficit permanente de relação, um sentimento de que faltamos sistematicamente com os outros, um pedido de desculpa previamente engatilhado na ponta da língua caso alguém nos aborde e pergunte sobre aquela resposta que ainda não lhe demos não ontem, mas no mês passado, no ano anterior, num tempo já remoto que foi se sedimentando.

Qual a saída para esse círculo do inferno contemporâneo?

Talvez assumir de vez que a oferta de conversa superou desde muito nossa capacidade de estar em todos os lugares, mesmo virtualmente. E, como se diz, "naturalizar o vácuo" educado, o esquecimento, o trabalho do inconsciente e do recalque da memória, esse tropeço e sua momentânea suspensão do fluxo.

E não se surpreender com respostas que chegam mais de um ano depois, como essas correspondências cujo andamento acompanhamos ansiosos porque nunca saem daquela posição de objeto em trânsito, num deslocamento sem fim, que não se cumpre.

Foto do Henrique Araújo

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