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Semestre 5
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Semestre 5

Tipo Crônica

É errado supor que seja 2022. O ano, na verdade, ainda é 2020, que, por sua vez, é uma versão piorada de 2019. Logo, vivemos o looping do que achávamos que seria o fundo do poço, até que conheceríamos de fato esse fundo.

Apenas para, no ano seguinte, entender que o poço não somente não tem fundo, como também se repete. Cenas se sucedendo sem cessar, a sensação de estarmos aprisionados naquela ilha de Lost, com um apresentador maluco girando a manivela e voltando o tempo a cada ciclo de 24 horas. Um dia da marmota em proporções planetárias.

Isso soa pessimista? Eu explico.

A pandemia acabou com o calendário gregoriano, com nossa ideia de tempo progressivo. O tempo, na verdade, está parado, não passa. Não digo que tenha estagnado de vez porque estou certo de que regredimos, o que só amplia a confusão mnemônica, esse abismo no qual chafurdamos sem saber se avançamos ou se andamos para trás, como um Marty McFly desorientado.

O começo de 2021 se assemelha ao de 2022, ou seria o contrário? Por sua vez, o ano recém-nascido aos poucos vai ganhando contornos de 2020, resultando nesse híbrido temporal diante do qual a gente se confunde, como se tivéssemos vivido uma bebedeira coletiva e agora tentássemos encaixar a chave na porta do apartamento, mas sem sucesso.

No futuro, quando alguém tentar evocar acontecimentos desta época, terá dificuldade para situar com precisão os episódios. Foi em 2020, 2021 ou em 2022? Tanto faz. Porque realmente não há grande diferença entre esses anos. Mas também porque não saberemos dizer com toda garantia. E espero que essa impressão não se estenda para a década. A década da peste, do apagão, da volta no tempo.

Vai ser difícil localizar cada coisa nesse borrão, salvo se você deixou rastros pelo caminho, como migalhas de pão. Teremos certeza apenas quanto ao que veio antes da pandemia, porque a doença demarca com força essa linha. Estabelece um rasgo na história pessoal e coletiva. Existe antes e depois, mas o durante é incerto.

De modo que tudo que fizemos antes terá a marca d'água cristalina do que se fazia antes da pandemia, um decalque desse período, de suas relações não mediadas por artigos de higiene e proteção sanitária, como máscaras e álcool.

O depois será facilmente reconhecível também, tenho certeza. À menção de uma tal ou qual situação, teremos a resposta na ponta da língua: isso foi depois da praga, quando tudo já tinha passado.

Eu me lembro. Lembro do momento em que tudo passou, ficou pra trás. Eu estava em casa quando vi no jornal que os números de casos tinham sido zerados. Depois de tanto tempo, agora o ponteiro do relógio começava a andar de novo.

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