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Novembro, quase dezembro
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Novembro, quase dezembro

Tipo Crônica

A comunicação da felicidade é sempre uma tarefa odiosa, dispensável e até certo ponto vergonhosa. Primeiro porque o feliz é um ingênuo, alguém a quem bastam as razões mais íntimas e os alvoroços de pequenas vitórias para se satisfazer e decretar solenemente: estou feliz. Ao feliz são indiferentes as grandes tragédias, o abismo político, Bolsonaro e o esgotamento da vida.

É uma condição cujo estatuto é definido, regrado, conhecido. Diz-se de alguém que é feliz, sem a necessidade de lhe perguntar por quê. Apenas é, como se a felicidade fosse atributo pessoal, uma categoria inata da qual algumas pessoas estão organicamente providas e outras não, como os cabeludos e os calvos.

Desse modo, pode-se falar de indivíduos felizes e de outros desafortunadamente infelizes como se de gordos ou magros, um traço fenotípico transmitido geneticamente diante do qual nada há que fazer, apenas agradecer e celebrar o sorteio randômico da Mãe Natureza.

Talvez por isso sempre tenha preferido o termo contente ao feliz. Primeiro porque o contentamento é da escala do efêmero. Vem e passa, deixando rastro de saudade. É subalterno à felicidade no mundo das palavras nobres, portanto. Numa loja, o feliz é o gerente e o contente, o caixa, que se regozija momentaneamente porque sabe que esse estado se desfaz em horas ou dias.

Segundo motivo: o contente sempre o é em virtude de algo, um objetivo alcançado, alguma realização, um horizonte atingido ou a proximidade. Nesse sentido, tem amparo numa base empírica, material, pragmática, ainda que mínima. Estou contente porque consegui agendar uma viagem ou porque fiz uma tatuagem ou porque consertei minha bicicleta e a partir de amanhã passo a andar novamente. Então há contentamento, às vezes muito, transbordante, às vezes pouco, ralo, mas suficiente para tocar os dias e chegar à semana seguinte.

Agora é novembro, quase dezembro, o fim de ano surgindo no horizonte como a Lagoa da Parangaba quando voltamos de viagem de avião e de longe se vê aquele espelho d'água sobre o qual a gente acha que vai cair de barriga. A vida acelerada que converge para a passagem de uma coisa a outra, num estuário de expectativas que se cumprem total ou parcialmente. Disso se extrai o contentamento.

Por exemplo, estou contente porque é este mês e não outro. Contente porque concluí uma etapa. Contente porque são dias em que tenho disposição para a mudança (a previsão astrológica confirma). Contente porque tomei o melhor sorvete do mundo (nata com goiaba da Pardal). Contente porque, apesar disso, perdi dois quilos. Contente porque pretendo ganhar dois quilos na ceia do Natal na casa da minha mãe.

Estou contente apesar de não ter conseguido uma vaga na fila da biometria para cadastrar o título no mutirão do Centro de Eventos, de modo que o horizonte cívico para 2020 é nebuloso - eu diria desairoso, talvez abismal.

E se disser que estou contente mesmo com esse calor de Fortaleza, não estarei mentindo. Em tudo há como que um sentido de reinvenção, reencantamento e reescritura. Um tectonismo zodiacal que, para alguém que não entende patavinas de signos, tem cheiro de algo promissor.

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Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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