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Livro secreto
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Livro secreto

Há dias procuro um livro específico que não sei qual é, mas a bagunça das estantes não tem ajudado. Reviro as pilhas, inspeciono as lombadas, checo atrás das prateleiras abarrotadas e reabro portas de armários há muito fechadas. Nada. Não está lá.

É um livro de capa fina, dessas que dobram e amassam facilmente e nas quais há uma infinidade de marcas de dedos de todas as pessoas que manusearam o livro antes de mim, uma cadeia de gestos da qual não sei nada, mas intuo apenas de olhar.

São impressões invisíveis, subcutâneas. Se o folheamos, de dentro desprende-se um cheiro antigo, odor de mãos e pele e objetos esquecidos, nódoas que foram se acumulando - uma de café, outra de uma substância que não consigo identificar, mas que associo a manteiga ou a algum produto gorduroso, vinho ou a oleosidade do próprio corpo, que varia conforme a geografia e a hora do dia. Não recordo a história desse livro hipotético.

Na verdade, não mantive um fiapo de nada do enredo nem dos personagens, tampouco sei-lhe ao certo as cores - se verde por dentro ou por fora, amarelo por cima e azul por baixo. Tenho apenas a vaga noção de que deveria encontrá-lo em algum ponto da sala ou do quarto, entre as torres de pequenos volumes nunca lidos que fui juntando e os que efetivamente li ao longo deste ano, que se organizam em menor quantidade e me observam taciturnos de um lugar remoto da casa, certos de que a vida é essa conversa sem fim.

Todavia, não é fácil achar coisas perdidas, e esse livro, pelo que sei, já deveria ter aparecido, eu imagino que sim, mas mesmo em relação a isso não tenho tanta certeza. Foi o que li no meu horóscopo, que esse livro ora aparece, ora desaparece, como um bóson de Higgs, aquela partícula que pode perfeitamente estar aqui ou ali. Como não sou tão bom em investigar rastros, mapeá-los até a origem, identificar o ponto de partida e daí em diante recompor um fio de meada, espero que o livro surja por si, a exemplo desse sinal que carrego no braço esquerdo. Fui dormir e, ao acordar, ele existia.

No caso desse volume em especial, contudo, um de folhas já muito gastas e de pouca serventia, as extremidades esmerilhadas que às vezes rasgavam os dedos, tenho falhado até agora. Ou ele tem falhado comigo. Ou ambos falhamos consigo. Apesar dos fracassos que se sucederam, os quais anoto diligentemente desde o dia em que entendi que o livro tinha se perdido de fato, permaneço alerta, olho ao redor, inscrevo nas paredes as mínimas alterações de rota.

Uma hora, quando menos esperar, ele vai aparecer ao lado de uma revista ou sobre a escrivaninha, atravessado como um desses gatos que se esticam no tampo da mesa antes de dormirem. Ou feito uma muda de roupa que supúnhamos para sempre extraviada porque não a víamos desde fevereiro ou março, mas estava lá, sempre lá.

Foto do Henrique Araújo

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