Logo O POVO+
Disparate
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Disparate

Tipo Crônica

Uma repetição: listas e mais listas. De objetos e deveres, coisas que devemos pôr em ordem, livros por analisar e episódios por entender. Itens da cozinha e da sala, tópicos de uma discussão já de antemão perdida e sem a qual passo bem. Listas de utensílios a levar ao conserto porque estão gastos ou falhos para o cotidiano e agora se escoram na parede, imprestáveis.

Um prazer: o vento que sopra desde ontem, rajadas que atravessam a casa inteira, desarranjam as roupas e fazem as capas dos livros baterem como se vivas. Um vento nem agressivo nem tenro, apenas força.

Um incômodo: óculos novos são uma mudança drástica na vida. Clareiam zonas antes embaçadas, ampliam o alcance do visto, oferecem nitidez ao que antes era sombra. Postos no rosto, somos outro, como um duplo que de repente assumisse em definitivo o controle dos atos. O equivalente a cortar o cabelo muito curto. Ou a mudar de cidade.

Um fato banal: espetei o dedo ao cortar as unhas, cortei-as porque não sei digitar sem antes deixá-las rente, de modo que não arranhem as palavras, mas escorram.

Um palpite: talvez chova porque lá fora está quente e o céu muito bonito, de um azul escuro que não vejo há muito, mas é possível também que o calor permaneça e os prognósticos se mostrem apenas o que talvez seja: coisas que poderiam ter acontecido.

Uma condição: agora bebo goles demorados de qualquer bebida. Escrevo e bebo, uma coisa parte de outra. Uma taça de repouso ao lado do computador como essas pessoas que esperam o ônibus na alta madrugada abraçadas a uma mochila cujo conteúdo não se conhece.

Uma platitude: é janeiro, começo de ano, quando tudo se reveste desse espírito de reinício segundo o qual a passagem do calendário instaura uma fenda no tempo, que bem ou mal usamos para preencher folhas e mais folhas de planos para os 365 dias (366 se bissexto).

Uma dupla diversão: enquanto o ministro falava a um grupo de jornalistas na TV que se sentia orgulhoso em bajular o presidente, eu assistia com minha filha a um filme de zumbis. Demos risadas.

Uma saudade: do cigarro que já não fumo. Menos do gesto, que disso tenho pavor, a afetação da mão que faz pender o objeto, mas do sopro e da fumaça. Saudade da garganta repleta de aridez e dos olhos acesos atrás da chama em meio a palavras que saem a quente.

Uma dificuldade: parar e descansar, a vida tão cheia de obrigações. Ontem mesmo senti que as mãos se avermelhavam e os punhos inflamavam, as articulações enrijecidas de tantos dias percorridos batucando o quê? Essas histórias de uma república em queda livre, as notícias do dia a dia, as mesmas dez ou quinze palavras que uso para registrar o mesmo punhado de frases: ele disse, ela falou, ele anunciou e por aí vai.

Uma mensagem: no prédio vizinho a luz finalmente foi apagada após dias mantida em trabalho, como se num flerte ocasional ou um sinal emitido para a nave que haverá de pousar vinda de muito longe no terraço.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?