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Cobrança de tributos: os fins não justificam os meios
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Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito. Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Professor da Faculdade de Direito da UFC e do Centro Universitário Christus. Visiting Scholar da Wirtschaftsuniversität, Viena, Áustria.

Cobrança de tributos: os fins não justificam os meios

O Poder Público, não raro, se vale de instrumentos indiretos de cobrança, oblíquos, que não visam a obter os recursos necessários à satisfação da dívida de forma direta, mas a trazer restrições ou incômodos ao devedor, retirados caso a dívida seja paga
Tipo Opinião
Não se pode tolher o exercício de uma atividade lícita, embaraçando-a sem que haja motivos legítimos para tanto, apenas para forçar o adimplemento inquestionado de alegados débitos (Foto: CC0 Domínio público)
Foto: CC0 Domínio público Não se pode tolher o exercício de uma atividade lícita, embaraçando-a sem que haja motivos legítimos para tanto, apenas para forçar o adimplemento inquestionado de alegados débitos

O credor de uma dívida geralmente exige diretamente de quem considera seus devedores o pagamento respectivo. Havendo resistência, está à sua disposição a execução, na qual o devedor pode mesmo perder seus bens, vendidos para com o valor obtido satisfazer-se o débito.

Tudo deve ocorrer com a intermediação do Poder Judiciário, abrindo-se a oportunidade para questionamento da exigência, que pode não ser devida. É preciso respeitar o “devido processo legal”.

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Na cobrança de tributos não é diferente, o Poder Público dispõe desses meios, até com mais privilégios que os particulares em geral. Mas, ainda assim, não raro se vale de instrumentos indiretos de cobrança, oblíquos, que não visam a obter os recursos necessários à satisfação da dívida de forma direta, mas a trazer restrições ou incômodos ao devedor, retirados caso a dívida seja paga.

É o que se dá quando a Fazenda cancela, ou declara “inapto”, o cadastro que o contribuinte é obrigado a possuir junto às suas repartições (p.ex., CNPJ), não porque o contribuinte tenha de fato encerrado suas atividades, ou, se se tratar de pessoa física, porque tenha falecido, ou se tenha descoberto que possuía cadastros duplicados, mas apenas porque possui dívida junto ao Fisco. O cadastro é transformado em verdadeira autorização para o funcionamento da atividade, o que a Constituição não permite.

A causa do cancelamento não é alguma inexatidão no cadastro, mas a mera existência da dívida, e, com o registro cancelado, o contribuinte é privado de exercer praticamente todos os seus direitos, o que inviabiliza suas atividades. Diante dos prejuízos imensos que daí advém, o débito, devido ou não, termina sendo pago, para que se afastem as restrições.

Tais instrumentos oblíquos de cobrança, contudo, são há décadas repelidos pelo Supremo Tribunal Federal. Há três súmulas que resumem essa ideia: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.” (Súmula 70/STF); “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.” (Súmula 323/STF); “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.” (Súmula 547/STF).

Em termos muitos simples, pode-se dizer que, na cobrança de tributos, os fins não justificam os meios. As atividades de um contribuinte até podem sofrer restrições, se estiverem ligadas a deficiências nas próprias condições para seu exercício. Um restaurante pode ser fechado se não atender requisitos mínimos de limpeza, assim como um prédio pode ser interditado se estiver correndo risco de desabamento.

Mas não se pode tolher o exercício de uma atividade lícita, embaraçando-a sem que haja motivos legítimos para tanto, apenas para forçar o adimplemento inquestionado de alegados débitos. A prática, aliás, chega a configurar o crime de excesso de exação, definido no Código Penal (art. 316, § 1.º).

Embora continue sendo adotada diariamente por autoridades fiscais, o fato não tem merecido a devida atenção do Ministério Público, talvez preocupado com os crimes tributários que diminuem a arrecadação, mas não com aqueles capazes de aumentá-la. Terá, também ele, esquecido que os fins não justificam os meios?

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