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Como se guarda o fogo
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Como se guarda o fogo

Tipo Crônica

Dá gosto ver como se faz. Além do deslumbre para o qual são feitas. Acontece a cada ano, no mesmo dia, mesmo lugar e, acredita-se, na mesma hora. Funcionam aos milhares, e para isso são feitas uma a uma e, como uma flor de papel, pétala por pétala. Houve ano com mais de 30 mil. Guardo tanto o acontecimento, destinado como experiência pública, quanto a feitura, invisível em sua maior parte, como invisível é quase todo o trabalho de sustentar o mundo.

Tenho ido ver a feitura. Para guardar melhor o feito. Tenho voltado para ver a festa, claro, e para os modos de fazê-la. Uso guardar, sempre repito, no sentido que o poeta Antônio Cícero trabalha no poema "Guardar": "Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado". Escrevo dia primeiro de julho, contando os seis meses rumo ao primeiro de janeiro de 2021. É o dia em que o ano termina e começa em Icó, na várzea do Salgado, Centro Sul do Ceará. Finda e reinicia com um sotaque que ressoa no lugar o ano inteiro. A repetição é um meio de fazer existir. No teatro, isso é tão claro: ensaia-se, repete-se, para dar passagem a algo, talvez, que não se conhece. Ou não se sabe dizer.

É espetáculo o que se dá a ver na cidade, todo primeiro de janeiro. O mestre que ora responde pelo fazer, ainda que não o faça sozinho, é de batismo Manoel Gonçalves de Sousa. Filho, neto, sobrinho, primo de mulheres e homens fogueteiros como ele. De apelido Bonfim. Cerca o fazer bombas desde que se entende por gente. Ele me ensina a apreendê-las de um modo outro. O fogo a luzir nas bombas, todo dia primeiro de janeiro, marcando o final da procissão do Senhor do Bonfim, percorre um caminho de muitos saberes conjugados. Eu vi Bonfim pilar, cozinhar, tecer.

Na primeira vez que fui vê-lo no trabalho, eu o vi em estado de presença: como se toda a vida que tivesse fosse para ali estar e fazer o que fazia. Cheguei logo depois do preparo do líquido negro com o qual banha fios e fios, por ele cortados e tecidos. Bonfim coloca-os para secar em uma armação de madeira que lembra teares. Quaradouros em cercas. Ele no ir e vir com os fios de uma estaca a outra, a desenhar ao sol assim uma espécie de dança da criação. Dias, meses de trabalho. A magia tem regras, procedimentos.

A instalação das bombas é feita para uma existência-raio. O fogo cintila já se extinguindo. Queima cada flor-bomba. Ouvi uma visitante depois do fogo: "Nunca me senti tão viva". Repito-me: bonito cuidar da alegria do mundo.

Foto do Izabel Gurgel

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