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Ar, água, arroz e alguma alegria
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Ar, água, arroz e alguma alegria

Tipo Crônica

Nos livros do Monteiro Lobato a partir do "Reinações de Narizinho", as crianças saem para brincar no e para além do sítio e Dona Benta se preocupa quando demoram. Estão reinando, como acontece no Reino das Águas Claras, por exemplo. Tia Nastácia diz para sossegar a avó: é só bater a fome e eles voltam correndo.

Guiado por seu mentor espiritual, Emmanuel, Chico Xavier parece inquieto à certa altura do passeio. Emmanuel apresenta ao médium o plano espiritual e diz que é um privilégio Chico estar ali em vida, levado por ele. Pergunta, então, como Chico pode não estar aproveitando a ocasião. Chico agradece, acolhe, reconhece a dádiva cheia de graça. Mas diz que está doido pra tomar um café com leite. E café com leite só tem na Terra.

Ver o feijão à mesa como um milagre. Não pela perversão da fome ainda vivida por tanta gente como modo de funcionamento do mundo. Também a você parece assustador viver sabendo que a fome, aquela que mata muitos também aos poucos, e mata às vezes antes de nascer, que ela seja uma produção social em curso?

Ver o milagre do feijão como uma monja pode ver o sol, fonte da vida na Terra, na roupa que veste: todo o ciclo de vida-morte-vida no linho, na linha (terra, água, sol, trabalho), nas ferramentas e utensílios (tesoura, agulha, máquina de costura), nos modos de saber e fazer (fiar, tecer, ensinar, aprender, transmitir, partilhar, elaborar com, inventar), de usar, restaurar, guardar. E um armarinho de etc. a cada coisa ou ação lembradas. E se dar conta do tanto de tempo que tem o mundo, antes de nós várias léguas.

Guardar, do parágrafo anterior, é no sentido que Antônio Cícero usa no poema de mesmo nome. Escute o poema na voz do poeta. E escute a fome na voz de Carolina Maria de Jesus. Recorro à monja pra usufruir do "o hábito faz o monge" e para bater a cabeça, ao modo do povo de santo, que toca a terra saudando o sagrado na hierarquia do tempo, para isso de viver na presença, alerta.

Estou a catar jeito de puxar conversa sobre como tornamos assim quase uma devoção - isso que é uma condenação social e se vive como danação pessoal -, como virou dogma incorporado (de trazer no corpo. E somos poros antes de virar pó) a compreensão letal de que tempo é dinheiro. Todo tempo é tempo de vida, diz o crítico Antônio Cândido. E tudo que é vivo se alimenta. Então que se cuide pelo menos do dizer, uma vez que o medo - também tem disso a nossa feitura - tem nos impedido de cuidar da gente, das pessoas. Cada qual e milhões que morrem de fome foram matados de fomes. E o nunca presidente não é polêmico, controverso. Nem líder religioso. Falar é agir: mente. A serviço. E quanto mais errado dá, mais certo foi o golpe. Em curso.

 

Foto do Izabel Gurgel

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