Logo O POVO+
A praia, São Francisco
Foto de Izabel Gurgel
clique para exibir bio do colunista

Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

A praia, São Francisco

Das notícias das festas da fé em São Francisco, Canindé como destino, guardo aquelas sobre romeiras e romeiros tomando banho de mar em Fortaleza. O texto a seguir é uma ficção em homenagem à primeira vez em nossas vidas. Você lembra da primeira vez que viu o mar?

...

Clara e Francisco tinham 12 anos quando viram o mar pela primeira vez. Manhã, sol, Fortaleza, Praia do Futuro."Segure na mão do Francisco, Clara", disse a mãe dela, Das Graças, antes de molhar os pés.

"Não tenham medo", disse a mãe dele, Auxiliadora. "É grande, mas abraça a gente". No caminho de volta para casa, tomariam um banho de água doce. Ligeiro. O gosto do sal mais tempo no corpo. E aquele mundo de água para sempre dentro dos olhos. Fosse possível, a risca do horizonte feito ex-voto, entregue na viagem seguinte.

Vinham da romaria a Canindé, que o povo de São Pedro de Caririaçu fazia todo começo de ano. Caminho de volta para casa descendo o Ceará, direção Sul. O banho de mar era um bendito desvio. Entravam no Cariri à noite, dia de Reis, 6 de janeiro.

Por toda a vida, entre eles, Clara e Francisco honrariam o desafio de fazer algo que nunca haviam feito antes a cada dia 6 de janeiro. Foi assim que decidiram seguir os passos do pai dele, Damião, e brincar no reisado do congo do Mestre Zé Matias, no último dia 6 antes de descerem a serra de mudança para Juazeiro do Norte.

Já vivendo na rua de Todos os Santos, pai dele agradecido por continuar morando tão perto do irmão gêmeo, o Cosme, pai dela, Clara e Francisco acompanharam em um dia 6 o guerreiro de Dona Margarida.

Foi a data escolhida para o casamento. Um ano depois, amanheceram cedinho na rua de Santa Luzia, compraram flores de papel na calçada e o dia foi para cuidar dos últimos preparativos da entronização do Sagrado Coração. Noite com banda cabaçal na frente da casa, sequilho feito suspiro, sumindo no céu da boca.

Tinham como certo que os filhos haviam sido feitos no sexto dia do ano. Primeiro chegou Baltazar. Três anos depois, Gaspar e Melchior. No dia 6 de janeiro do ano em que completavam sete anos, os meninos brincavam pela primeira vez no reisado do Mestre Aldenir, só para criança.

Naquele 6 de janeiro que Francisco não acordou, Clara chegou bem pertinho dele e ficou repetindo, devagarinho no pensamento, até ouvir o som das palavras. E depois até não ouvir mais o som delas:

- Titico, assim não vale.

- ...

- Como é que você vai me contar como foi?

- ...

Clara lembrou de toda a água do mar que haviam guardado nos olhos há 82 anos. Segurou na mão do Francisco. E mergulhou.

 

 

Foto do Izabel Gurgel

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?