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Bonfim
Foto de Izabel Gurgel
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Bonfim

Se eu fosse um dia do ano, seria o primeiro de janeiro. Um acontecimento, Icó dia primeiro de janeiro. Tem a verdade da rosa a brotar o primeiro dia do ano ali na várzea do Salgado, às margens das águas indo para o Jaguaribe. O mar como destino delas. Você já viu válvula de açude espargindo água na paisagem? Um Orós regando o ar é o primeiro de janeiro na ribeira dos Icós.

O verso da rosa é Fernando Pessoa modo Alberto Caieiro. Não está bem dito, mas citação pode ser desejo de encontro. Desejo a reluzir seja para um dia, uma criatura, uma cidade. Icó no plural tatua na pele do hoje cada mulher, homem, nossos ditos povos originários que inventaram a vida ali. A matéria vida sempre tão fina. Existiríamos?

É o maior dia do ano na cidade-encruzilhada das estradas do Ceará Colonial. A cidade-lapinha em dezembro, a cidade da Mazinha, 96 anos (Maria Irismar Maciel Moreira, a professora das professoras). Eu ouvi Mazinha dizer, à frente de casa, na outrora rua larga da passagem das boiadas, que o mais bonito da cidade era aquela planície. Cada letra se realizando ao passar pelo céu da boca, a materializar como cinema nos olhos dela o tanto vivido entre aquelas abundâncias de chão e céu.

Como os caminhos das águas, inventariados pela indiada; os das boiadas; os de ferro, de lá desviados, riscando um destino outro para Icó; os caminhos do fogo estão inscritos na pele da cidade. O engenho de taboca papel pólvora e fogo só se realiza uma vez por ano, no primeiro de janeiro. É obra de longa travessia, rastilho que sigo feito abelha adivinhando flor, bicho com sede sentindo cheiro da chuva ainda no modo nuvem.

Às cinco da tarde, sai em procissão o Senhor do Bonfim. Os caminhos da imagem redesenham a cidade, cearás. Ela veio pelo sertão de dentro, da Bahia, deixando lá a imagem irmã da festa de mesmo nome, as duas já cheias de mar, bentas na travessia Portugal/Brasil. Contamos uns mais de 300 anos, mas nossa contemporaneidade é coisa de milênios, cito Câmara Cascudo. A imagem fica nos altos do altar e de lá desce uma vez por ano para uma semana no corpo a corpo com nossa humanidade. Desce na madrugada, pouca gente dá conta do ato, só vê o milagre do dia com ela já toda enfeitada, bem perto de nós. Depois da procissão, volta para a igreja. E todas as vidas do Seu Bonfim (Manoel Gonçalves de Sousa, atual mestre fogueteiro), dos Madalena, ascendências e descendências das gentes fogueteiras se justificam, dizendo para o que Icó foi feita. Para ver, feito válvula de açude, a flor brotar das bombas do Senhor do Bonfim. É o fim e o começo do ano. E do mundo. Todo primeiro de janeiro.

Ouvi a professora Lourdes Maciel dizer que o Senhor do Bonfim ali não é calvário: é exaltação. Então, rezo para o Senhor do Bonfim não sair em procissão. Em nome da vida, seremos mais quanto menos estivermos reunidos.

Foto do Izabel Gurgel

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