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Como minha mãe fazia bolo
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Como minha mãe fazia bolo

Era sempre à tarde. Só lembro de ter visto minha mãe fazer bolo depois do almoço. Para ver melhor, eu ficava em pé na cadeira, comendo com os olhos. Difícil fazer claras em neve. Pior do que raiz quadrada. Bater até firmá-las. O teste era virar a tigela e a neve de claras não sair do lugar. A tijela existe ainda. Veio da avó Rosa. Da casa que se esvaziou com a morte dela, antes da morte do avô.

Meu avô foi deixando de comer. Nos seus últimos dias, tomava líquidos em colheres de sobremesa. Depois, em colheres menores, como aquelas de brincar de casinha. Bem perto do fim, só água em breve passagem pelos lábios. Água, algodão. Nuvens nas mãos das tias. Revezavam-se, dia e noite, e era bonito ver o cuidado, mas doía muito também. Tudo junto. Um dia, molhei o algodão e passei nos lábios do avô João. Passou um filme da minha vida com ele.

Ele já não chorava mais de saudade da minha avó. Talvez chorasse sem lágrimas, sem som. Desligava poro por poro? A respiração foi ficando mais lenta. As tias e o espelhinho no nariz. Passavam um espelho junto ao nariz do avô. Era um alívio ver o espelho embaçar, lento também.

Ia e voltava da escola ausente da zoada da rua. O avô cego que saudava Deus e o mundo, e era saudado no meio do caminho, ele foi desaparecendo, como o Rio do Angelim. A avó Rosa morreu no Carnaval e João começou a murchar. Ela morreu em casa, entre filhas e filhos, netas e netos. É difícil ver morrer uma pessoa que a gente gosta. Mas pode ser bonita, em sendo possível, a despedida. É um momento grande o de cessar.

O avô passeador deixou de sair de casa. Abria o olho quando eu tomava a bênção. Penso que ele estava me vendo. Narrativas da consolação. Queríamos vê-lo voltar a comer, a conversar, a passear. Ele só queria encontrar a Rosa.

Assim como minha mãe sabia o que podia ir junto no bolo, sempre imaginei meu avô junto com minha avó. Talvez pela foto do álbum, também sumindo devagar, como o rio. Estão juntos no tornar-se outra coisa.

Depois da morte da avó, o gato preto que ela criava nunca mais entrou em casa. Andava pelo muro do quintal, sozinho a cismar com o abacateiro plantado por ela. O abacateiro secou junto com o avô. Anos depois, voltou a florescer, minha mãe colocando água todo dia bem cedo. Meu pai, à tarde.

Era assim que minha mãe fazia bolo. Misturava, batia, assava em fogo lento que era o modo como a cidade, um pé de serra, ficava em meio ao calor da tarde. O bolo era para comer com café forte e quente. Às vezes, tão quente que tirava a pele do céu da boca. A gente passava a língua para aliviar. Mas, às vezes, não aliviava.

...

Além da vacina, o que hoje nos daria algum alívio em meio à matança em curso? Como vamos fazer o luto (quase) impossível de cada uma das mortes por Covid-19?

Foto do Izabel Gurgel

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