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Gilmar, ourives de gente
Foto de Izabel Gurgel
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Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.

Gilmar, ourives de gente

No lançamento do seu livro-tese Madeira Matriz, Gilmar de Carvalho (1949-2021) celebrava um rito de passagem na vida de João Pedro C. Neto, nascido em 1964. Realizava-se ali, com a abertura da individual do artista, segundo Gilmar, “uma cerimônia de iniciação no mundo da xilogravura a cujo rol de intérpretes” João Pedro passava, então, a fazer parte. O lugar: a sede, em Fortaleza, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Era junho de 1999.

Ano da mudança de João Pedro para Fortaleza. Seus caminhos haviam se cruzado em Juazeiro do Norte. E para lá voltamos ao visitar a casa-ateliê do artista, com a equipe do Cine São Luiz, que em agosto realiza programação dedicada ao mestre de tantas vidas que foi Gilmar. Ouvi, então, pela primeira vez, João Pedro falar das visitas do pesquisador à Lira Nordestina como uma ceia larga.

Dias depois, li João Pedro contando a cena pronta para ser riscada na madeira: Gilmar à grande mesa da gráfica herdeira da Tipografia São Francisco, do alagoano José Bernardo da Silva. Sentado ao centro, gravadores à sua volta. Arguto na escuta, acolhedor na partilha, dava-se a comunhão. Gilmar a oferecer esperança, fé e trabalho.

Muito do que conhecemos da xilo contemporânea de Juazeiro resulta não apenas do estudo, documentação, registro de uma vida do escritor. Gilmar é co-inventor do acervo que, com suas sucessivas encomendas, volta a florescer, feito olho d´água desaparecido a brotar com o replantio da mata.

João Pedro conta bem seu nascimento. E rende graças ao criador, como podemos ver na exposição em cartaz no site do São Luiz. Dividimos a mostra em quatro núcleos de matrizes e xilos, a partir do que encontramos em sua casa-ateliê no Centro de Fortaleza.

“Ourives do Tempo” é o primeiro núcleo, com a série sobre o multiplicador Gilmar, iniciada logo depois de sua tão bruta morte, vítima da Covid e da matança como política pública em curso no país. O núcleo “Iluminuras Sertanejas” usa o termo tão bem dito por ele sobre a poesia das xilos. Estão aí o milagre-marco de Juazeiro, 1889 (a Beata Maria de Araújo comunga e a hóstia se transforma em sangue), o arraial do bem viver de Conselheiro, as chuvas, a fartura.

O núcleo “Madeira Matriz” mostra parte da feitura da xilo. Atenção para o uso das cores, aprendizado iniciado com o pernambucano J. Borges, que por artes da curadora Dodora Guimarães ministrou oficina no Cariri cearense. O núcleo “Oferendas ao Tempo” fecha e abre um novo ciclo. No tempo mítico, cíclico, as divindades dançam a criação.

João Pedro diz Gilmar senhor do tempo. À mesa com eles, todos pensando no presente, e o professor feito profeta a vislumbrar futuros para cada um.

Bendito encontro. João Pedro incorpora Juazeiro ao nome. Gilmar o faz alçar vôo, como diz no título de um texto sobre o gravador: João Pedro do Juazeiro e do Mundo. Sim, um ourives de seres humanos, como me disse João Pedro. E escreveu. Bonitíssimo destino para um mestre de si como foi Gilmar, o sulco mais incisivo que se pode fazer no desenho da própria vida.

O livro Madeira-Matriz começa com Gilmar contando que tocava Luiz Gonzaga quando ele nasceu em Sobral. A música: Juazeiro.

 

Foto do Izabel Gurgel

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