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O problema não é o presidente
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

O problema não é o presidente

Tipo Opinião

Não gosto de ter de voltar sempre ao mesmo ponto e soar repetitiva, mas o governo de Jair Bolsonaro é um convite a uma espécie de moto-contínuo sádico.

Durante a semana, testemunhamos, sem surpresas, mais um episódio de absurda impostura institucional - o presidente da República, que há meses anuncia que a urna eletrônica é fraudável, afirmou que finalmente iria expor as provas das fraudes eleitorais.

Agendou uma live, quis que a imprensa cobrisse ao vivo, sem chance de perguntas. E, no fim das contas, como se imaginava, sem apresentar as mais tênues evidências da fraude que sugeriu, gastou seu português inculto para tripudiar da Justiça Eleitoral e de ministros do STF.

Já é chamado de moleque pela corte: bravateiro, indigno do cargo, sem qualquer compostura presidencial. E nós, que assistimos a toda essa repetição de crimes de responsabilidade impunes e inconsequentes, só subimos um degrau no nosso cansaço de cidadão. Não há paciência que salve o brasileiro do desencanto de seu governo.

Escrevi, em outras oportunidades, que o nosso mal maior não é o presidente, é como reagimos a ele. Há uma espécie de passividade coletiva, uma incapacidade para reagir conquistada graças ao exaurimento que seu comportamento disruptivo causa.

Nós deixamos de nos chocar, ficamos anestesiados ante ao absurdo, como se apenas contássemos que o tempo vai passar, e Bolsonaro cairá no ostracismo que lhe espera. A cada semana, ele sobre o tom e nós nos indignamos um pouco menos.

Essa passividade não é um mal apenas do homem e da mulher comuns, sem poder de interferir nos processos deliberativos e nos ritos constitucionais.

Ela alcança as instituições que deveriam responder aos absurdos: os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; o Procurador-Geral da República; o Supremo Tribunal Federal, todas as autoridades que, por sua atribuição, teriam verdadeiro poder de agir - e delimitar.

Nesse caso, é uma passividade não associada ao cansaço, mas a um cálculo político.

As chances de derrota eleitoral de Bolsonaro aumentam a cada mês, seu governo passa por um processo de derretimento que o torna uma criatura amorfa, absolutamente irreconhecível para seus admiradores mais entusiasmados, se levarmos em conta as promessas de campanha do candidato em 2018.

O abraço fraterno entre o presidente e Ciro Nogueira, o mais fino exemplar de político do Centrão, foi a cereja sobre o bolo. Bolsonaro pode ser qualquer coisa, menos o que seu eleitor imaginava que fosse. É difícil negar isso, porque mesmo o mais apaixonado dos idólatras pode ter seu coração partido pela infidelidade ideológica.

Por conta dessa percepção geral, criou-se o lugar comum que é melhor deixar sangrar, contendo a sanha pelo impeachment. É difícil prever o que vamos herdar depois de concluída essa estratégia.

Temos um país quebrado, que, em uma semana, perdeu um banco de dados fundamental para ciência e um acervo inestimável da história do seu cinema. Professores são perseguidos por autoridades constituídas, a liberdade de expressão agoniza. Valerá a pena? Até quanto estamos dispostos a perder a pretexto de encenar a normalidade? n

 

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