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A democracia se despedaça
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

A democracia se despedaça

Tipo Opinião

Os Estados Unidos da América gostam de se vangloriar de sua forte tradição democrática, que supostamente teria ensinado ao mundo as virtudes e as potencialidades de um povo que governa a si mesmo.

Trata-se de país cuja potência militar e econômica é indiscutível, forjado na tradição do liberalismo político, uma ideologia que possibilitou à ex-colônia inglesa estruturar uma arquitetura jurídica muito sofisticada e estável para seu próprio país.

Essa estrutura define arranjos que conhecemos bem até hoje: a separação de funções estatais em instituições independentes, um tribunal constitucional responsável por assegurar a supremacia das normas mais importantes do país, uma carta de direitos invioláveis mobilizados como armas importantes contra o arbítrio do Estado.

Com esses pilares, dizem os democratas liberais, se assegura a liberdade individual e se domestica a força do Leviatã, colocando-o a serviço dos interesses da sociedade.

Suposta luz do mundo, a república democrática ianque habita o imaginário da história política do Ocidente como a brava terra dos homens livres, dispostos a matar e a morrer em nome da sua constituição.

Foi o fascínio pela experiência norte-americana que levou Alexis de Tocqueville, um jurista francês decepcionado com os rumos de sua pátria ensandecida e oscilante, a visitar os Estados Unidos em 1831.

A viagem rendeu uma das mais importantes obras do cânone do pensamento político do século XIX, A Democracia na América. "Eu confesso que na América eu vi mais do que a América; eu vi a imagem da democracia mesmo, com suas inclinações, seu caráter, seus preceitos, e suas paixões, o suficiente para aprender o que devemos temer ou o que devemos esperar do seu progresso".

Passados quase duzentos anos da publicação do clássico de Tocqueville, ainda podemos nos perguntar: o que esperar e o que temer da democracia que acontece nas terras tão poderosas de pai fundador da liberdade política? Boas respostas agonizam nos escombros do Afeganistão.

Há cerca de duas semanas, descobrimos estupefatos que a maior potência militar do mundo deixaria, rápida e desorganizadamente, o complexo e instável território que ocuparam por décadas.

Ficariam para trás uma multidão de civis desesperados e um estado inexistente. Ao vivo e em cores, vimos seres humanos agarrados ao trem de pouso de aviões militares em plena decolagem, mulheres desesperadas pela perspectiva do confinamento e da perda de todos os seus direitos mais básicos, aliados abandonados para prestar contas com o inimigo.

O que esperar da democracia da América? Insensibilidade, irresponsabilidade e desordem.

Como ápice trágico, na última quinta, um atentado terrorista matou mais de uma centena de pessoas que se aglomeravam nas proximidades do aeroporto de Cabul na ânsia de escapar do regime Talibã.

Morreram militares e crianças, porque os estilhaços não poupam nacionalidades e revelam o absurdo total da política de um povo que imagina ser possível exportar a liberdade como quem exporta pólvora.

O que, afinal, temer da democracia da América? Sua invencível habilidade de, para além de seus muros, semear o caos e anunciar a morte. n

 

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