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Professor: "Um artista da fome"
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Professor: "Um artista da fome"

Tipo Opinião
Ilustração de Mateus Fidelis para a coluna Educação e arte de Lúcio Flávio Gondim (Foto: Mateus Fidelis)
Foto: Mateus Fidelis Ilustração de Mateus Fidelis para a coluna Educação e arte de Lúcio Flávio Gondim

O ano de 2013 chegava a seu clímax histórico quando, no primeiro semestre do curso de Letras, foi-me apresentado o conto "Um artista da fome" de Franz Kafka por uma professora de Teoria da Literatura. Após lê-lo, eu iria conhecer a obra do tcheco, amá-la e até participar, como ator, do início de uma montagem para o seu "Na colônia penal", que se tornaria espetáculo do Cangaias Coletivo Teatral em Fortaleza. De todo modo, foi no conto que fiquei e cada vez mais nele me vejo enquanto professor.

Fosse um balanço de barquinho, desses de recreio de escola, Saúde e Educação, os dois pilares que o senso comum utiliza para fundar e dar esperança a uma sociedade, não poderiam estar mais íngremes. Fundamentais e desafiadores, o primeiro é ininterruptamente almejado enquanto o segundo goza de uma pena sofrível e injusta. Ou justa, haja vista a condição salarial e simbólica que faz estudantes sonhadores se afastarem dele e que desestimula profissionais competentes.

Proponho um exercício simples: lembre-se de como você adentra um consultório médico. Recorde o silêncio do girar da maçaneta; os ombros inclinados; o tom baixo da voz; o receio... Daqui, do outro lado do balanço, nunca me esqueço de ter a sala de aula "invadida" por uma coordenadora que espiava, atrás da porta da turma, minha primeira aula na sua escola. Ela entrou sem se anunciar, perguntando, em um grito e de braços abertos, o porquê do barulho discente que aparentemente eu não controlava.

Sobretudo, filho de pedagoga, lembro-me de minha mãe me contar de suas colegas dormindo enfileiradas na porta das regionais da cidade na busca por uma vaga, mesmo já tendo sido aprovadas em seleções para professor temporário. Lembro-me de um amigo, também docente, passar o dia inteiro trabalhando para que, ao fim do expediente, seu diretor informasse que seu contrato estava encerrado desde a manhã. E assim seguem os casos, inúmeros e pessoalmente dolorosos. Porque a dor de um/uma é a dor - e a luta - de toda uma categoria.

Nunca tivemos tamanha oportunidade de sermos visibilizados quanto em um regime de isolamento social. A pandemia poderá ter minimizado a lenda urbana de futuro e provável descarte dos docentes, ainda que nos tenha deixado assolados de tarefas, incompreensões e novos abusos como o de que somos os únicos que não queremos trabalhar durante a pandemia quando, em verdade, não paramos um dia de fazer da Educação um serviço essencial. Para fortalecê-la ainda mais, com nosso retorno às salas de aula, precisamos de vacinas a todas e todos!

Ainda sobre crenças, creio ser fundamental alterarmos a ideia de que o(a) aluno(a) é o foco da Educação. Para mim, o centro deve ser o próprio processo de aprender, estando neles inseridos - e bem cuidados! - todos os seus agentes: estudantes, mestres, zeladores, bibliotecários, gestores, famílias... Pedem-nos sem cessar, por exemplo, empatia, escuta e busca ativas, porém elas não me parecem ser dadas a nós na mesma intensidade e potência.

Somos, assim, o artista de Kafka, aplaudidos por nossa escassez alimentar, com fé de que o jejum uma hora possa se tornar saciedade. Desistir de devorar um mundo múltiplo e polissêmico é a morte de tudo, porém a falta não pode ser uma condição. É preciso resistência e sonho em condições materiais para quem gera todas as possibilidades humanas por meio do ensino. Precisamos igualmente de união, autoestima e respeito por nosso ofício, gerando uma cadeia de força para quem conosco compartilha desprezos simbólicos e físicos.

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No fim de março, lembro por fim, foi dia do circo. Minha mãe se vestiu, pintou-se e encenou uma palhaça para que seus estudantes em lockdown pudessem se inspirar e viver o lúdico em meio às trevas. Aquele vídeo virou uma fotografia espelhar para mim. Nele, vi todos os que se fazem mercadoria para sobreviver, sendo senhores e senhoras da máquina da vida. E sei disso não porque sou um trabalhador da Educação, mas porque fui salvo na vida por heroínas e heróis que me guiaram todos os dias em sala de aula até que eu chegasse até aqui.

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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