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Clarice em classe
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Clarice em classe

Tipo Opinião
Ilustração de José Ivan Torres, ex-aluno do professor Lúcio Flávio Gondim (Foto: José Ivan Torres)
Foto: José Ivan Torres Ilustração de José Ivan Torres, ex-aluno do professor Lúcio Flávio Gondim

Conheci Clarice Lispector no meio do Ensino Médio. Dela seria um de meus livros paradidáticos do segundo ano. Deram-nos a ler o clássico e pseudojuvenil "Felicidade clandestina". Num sorteio de contos, não cheguei nem perto de trabalhar o que trata da história da menina com seu amante, o livro de Lobato. Fiquei com "Amizade sincera" e outros de teor tão denso e cortante quanto uma faca que paira no ar. Clarice fresca no palito! Mas isso era na disciplina de leitura e produção textual. Eis que o professor de literatura descobriu que aquele seria a obra lida por nós naquele bimestre...

Jamais me esqueço de ele dizer quase com essas mesmíssimas palavras "O quê? Vocês vão ler Clarice? Mas isso não é possível... Essa autora é dificílima. Até hoje eu não consigo entendê-la bem! Ela tem livros que só uma taça de vinho pode ajudar a compreender, a dar um clima, a fazer uma preliminar...". O que poderia ser uma provocação erótica chegou a mim como um irmão da libido: o tabu. Feito o trabalho (li estritamente os contos que me foram exigidos), Clarice foi esquecida no rol de fantasmas que só "o deus" faz questão de tirar do esconderijo.

O deus foi o curso de Letras. Ele tiraria a escritora desse armário empoeirado e faria com que ela se tornasse minha autora predileta. De todos os livros que atualmente venho peneirando para saber dos quais me desfaço ou não, só os de Clarice permanecem sem titubeios. Eles preenchem a estante como relíquias da impermanência, registros de um caos cotidiano que, se em minha cabeça é doloroso e angustiante (como certamente o foi na de Clarice!), nos livros é poético. Poético e salvador: talvez seja para testemunharem abismos e construírem cordas de salvação que servem os sofrimentos.

Por tudo isso, Clarice Lispector me é fundamental, mesmo que não seja lida. Assim é, por exemplo, em uma situação de flagrante dor em que suas palavras enigmáticas mais me neblinam. Nessas horas, eu apenas seguro meu "A descoberta do mundo" como quem se agarra a uma imensa chave cuja utilidade eu a cada dia tento conhecer. Penso, ao falar disso, em como o adolescente Lúcio Flávio poderia ter sido iluminado com contos, crônicas e romances dessa autora. Essa é a razão maior para que, por exemplo, eu leia tais obras em minha sala de aula! Quero destacar uma experiência clariciana para vocês.

Li "A hora da estrela" com uma turma de fim do Ensino Médio. Era o ano do centenário de Clarice, esse mesmo que deverá ser conhecido para sempre como o da pandemia do novo coronavírus. Não conseguimos comemorá-la fisicamente, porém ficaram para sempre em mim as epifanias e (in)conclusões a que meus estudantes chegaram. Assim também como ficaram, num terreno menos memorialístico, porém de intrigante curiosidade, a rejeição das professoras da escola em que trabalhava quando eu sugeri que Clarice se tornasse paradidático das turmas.

Uma possível verdade, esta a que se chega num relance de "instante-já", dita pela protagonista desta crônica, é que não estamos mais conseguindo ser grandes leitores e leitoras. Saímos por vezes de cursos como licenciaturas pouco conhecedoras(es) de grandes obras e, pior, com receio de suas autoras e autores. Uma pena. Encontrei, como profissional, colegas que mimetizaram meu antigo professor. Uma possível saída é a emergencial complexificação do pensamento de nossas alunas e alunos. Nossos discentes estão, sim, preparados para uma introdução ao grito mudo, à animalidade humanizada, ao vazio vulcânico e aos demais símbolos da água viva de Clarice. Não só aos dela, mas aos de outros nomes do cânone.

Porque um cânone é uma inscrição invisível e móvel daquilo que promove vida dentro de nós. É preciso, por exemplo, investigar o porquê de mulheres e homens brancos serem tão presentes nesta lista oficial de boas escritas. Feito isso, pode-se lutar pelo engajamento de mulheres e de homens pretos, gays, indígenas... Para investigar, é preciso ler. Para ler, é preciso motivação. Para que haja, enfim, motivação para qualquer coisa nesta nossa vida de Macábea, mostra-se imprescindível que haja engajamento profundo com o que nos faz chorar e rir diante deste mundo, um velho cego que masca chicletes.

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Foto do Lúcio Flávio Gondim

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